O
inquisidor amaldiçoa Satanás e o fogo crepita e devora. Em volta do
queimadeiro, os hereges uivam de cabeça para baixo. Pendurados pelos pés, em
carne viva pelas chibatadas, os índios recebem banhos de cera fervendo enquanto
crescem as chamas e gemem os frios, como queixando-se.
Esta
noite se transformam em cinzas oito séculos de literatura maia. Nestes longos
rolos de papel de casca de árvore, falavam os sinais e as imagens: contavam os
trabalhos e os dias, os sonhos e as guerras de um povo nascido antes que
Cristo. Com pincéis de pêlos de javali, os sabedores de coisas tinham pintado
estes livros iluminados, iluminadores, para que os netos dos netos não fossem
cegos e soubessem ver-se e ver a história dos seus, para que conhecessem os
movimentos das estrelas, as frequências dos eclipses e as profecias dos deuses,
e para que pudessem chamar as chuvas e as boas colheitas de milho.
Ao
centro, o inquisidor queima os livros. Ao redor da fogueira imensa, castiga os leitores.
Enquanto isso, os autores, artistas-sacerdotes mortos há anos ou séculos, bebem
chocolate na sombra fresca da primeira árvore do mundo. Eles estão em paz,
porque morreram sabendo que a memória não se incendeia. Não se cantará e
dançará, por acaso, pelos tempos dos tempos, o que eles tinham pintado?
Quando
queimam suas casinhas de papel, a memória encontra refúgio nas bocas que cantam
as glórias dos homens e deuses, cantares
que de gente em gente ficam, e nos corpos que dançam ao som dos troncos ocos,
dos cascos de tartarugas e das flautas de taquara.
GALEANO, Eduardo.
Memória do fogo, 1: nascimentos. Tradução Eric Nepomuceno. Rio de Janeiro: Paz
e Terra, 1983. p.170
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