segunda-feira, 3 de setembro de 2018

JARDIM FECHADO: Mário de Oliveira

“Mário de Oliveira (?-1977) é, cronologicamente, par droit de naissance, o primeiro poeta e, por igual, o primeiro bacharel em Direito do então Território, hoje Estado do Acre. Nascido em Rio Branco, no antigo seringal “Empresa”, fez os estudo primários e secundários em Manaus, onde não só conviveu com futuros expoentes das letras amazônicas, como Álvaro Maia, Cosme Ferreira, Carlos Mesquita, Vicente Bonfim e Edgar Lobão, mas também ensaiou os primeiros passos no beletrismo planiciário, assinando crônicas e poesias nas revistas estudantis “Aura” e “Lúmen Amazonense”, que fizeram época.
Transferindo-se para Fortaleza, torna-se, em 1914, bacharel em Ciências e Letras e, em 1918, com distinção, em Direito. Na capital cearense, o pendor literário do jovem acreano acentua-se e é chamado a integrar o grupo acadêmico “Tertúlia Clóvis Beviláqua”, que editava a revista “Tertúlia”, da qual se faz redator-secretário e ativo colaborador, como cronista e poeta.
Sua poética, como não podia deixar de ser, sofre influência da época, quando, no plano nacional, pontificavam Olavo Bilac, Guimarães Passos, Vicente de Carvalho e tantos outros mestres do Parnaso brasileiro. Embora chegue a adotar formas menos rígidas, posteriormente, como a polimetria e o verso branco, a verdade é que nunca abandonou a linguagem, a medida e o ritmo clássicos tradicionais, perdendo a moderna poesia brasileira, destarte, quem poderia ter sido um de seus elementos em prol.
De retorno à terra natal, aí passa grande parte da vida, no exercício de atividade polimorfa, no magistério, na imprensa, na tribuna, já membro fundador da Academia Acreana de Letras, já do Instituto Histórico e Geográfico do Acre. Quando dali se retira, por imposição do cargo que ocupa no Ministério Público da União, vai fixar residência no Rio de Janeiro e, após a mudança da capital, em Brasília, cidade ainda hoje se encontra, no gozo da tranquila e merecida aposentadoria dos que cumpriram o dever.” Romeu Jobim, prefácio, dezembro de 1970.


SAUDADES
“Ora (direis), ouvir estrelas...”
Bilac

Longe de mim – suplico – os olhos ponhas
No constelado manto das estrelas,
E busques, dentre as muitas, uma delas,
Que te fale de mim, se acaso sonhas...

Certo que ouvi-las, tão somente pelas
Cintilações de luz, flébeis, tristonhas,
É só das almas que, entre si inconhas,
Sabem senti-las, muito mais que vê-las...

Pois bem, atenta! Quando a noite, em meio,
Na azúlea concha for declinando,
– Tu hás de ouvir, a palpitar-te o seio,

Que uma fala de mim, de como, e quando,
Eu, a fitá-la, de saudades cheio,
Versos de amor, a ti, vou recitando... p.36


SAUDADE

Em certa noite enluarada,
Da “via láctea” na estrada,
Que eu fitava, em nostalgia,
Meus tristes olhos magoados
Viram, então, deslumbrados,
O que, estranho, sucedia:

No azul do céu, as estrelas,
A fim de eu bem entendê-las,
Foram-se, aos poucos, juntando,
Formando a palavra triste,
Que em todo peito coexiste,
E mais em quem vive amando...

E em sete letras, apenas,
Lembrando, porém, de penas
Um mundo, que nos invade,
– Eu li a triste palavra,
Que, dentro em mim, mora e lavra:
– Eu li, bem claro: – “Saudade”... p.81


REVIVESCÊNCIA

Quanto tempo estivemos separados,
Vivendo a solidão de almas viúvas!
Ó triste coração, quase estiolados,
Quais pobres flores a que faltam chuvas...

Tal, porém, acontece à “sempre-viva”,
Que um pouco de umidade reverdece
Nossa paixão, em ânsias redivivas,
Por nos revermos, mais se exalta e aquece.

Que indizível cadeia de contrastes
É a vida dos que se amam e se querem!
Queixas, mágoas, pesares e desastres,
– Tudo é esquecido com se, apenas, verem...

As desventuras, que, silentes, moram
Na alma de dois amantes sofredores,
Transformam-se em sorriso, e ao lábio afloram,
Como no campo desabrocham flores...

Ver-te de novo... Ter-te perto, enfim...
Prender, nas minhas, tuas mãos queridas...
Sentir teu corpo aconchegado a mim...
– Quanta recordação de horas vividas!
E os nossos lábios se buscando, ardentes...
E o langor dos teus olhos de veludo...
E as carícias das nossas mãos frementes...
E o meu silêncio te dizendo tudo!...

Horas de redenção, horas benditas!
Horas de enlevo, e êxtase, e ventura!
Horas plenas de graças infinitas!
Horas cheias de sonho e de ternura!

Horas, que valem pelas dores todas,
Que hemos sofrido, quase sem ter fim!
Horas em que sagramos nossas bodas:
– Eu, todo em ti, e toda tu, em mim... p.82-83


MEMENTO

Homem, vaidoso Irmão! – vamos ao Cemitério.
Dos Mortos este é o Dia... Anda, pois; vem comigo.
Vamos, juntos, sentir, bem de perto, o castigo
Que da Vida é a Morte, em seu atro mistério...

Na silente mansão, em cada rosto amigo,
Sentiremos da Dor o intangível império,
A enlutar corações, e, qual rubro cautério,
Queimando, dentro d’alma, a cada um consigo...

E veremos também que humanos preconceitos
Tombam, frágeis, por terra, em face da verdade:
– Que todos somos pó, e às mesmas leis sujeitos!

A vestal e a rameira, o pária e a potestade,
A jazerem, por fim, nos derradeiros leitos,
Têm, tornados em lama, a perfeita igualdade... p.97


A FLOR DA VIDA

Flor em botão, – semelha a infância descuidadosa,
A sorrir para a vida,
Como se a vida sempre um mar fosse de rosa...

Flor aberta, a seguir, – é a idade apetecida,
Esparzindo perfume,
E que a ronda de amor dos colibris convida...

Flor secando, a morrer, de mágoas se presume
            Desfolha-se a corola,
As pétalas caindo, em silente queixume...

Pois botão, depois flor, que, em breve, se estiola,
Pendendo, emurchecida,
– Eis a imagem real, que aos olhos desenrola
A nossa própria vida... p.107


POEIRA DA ESTRADA

Como é grata a partida pela estrada
Da vida, manhã clara, sol nascente!
Em cada curva, em cada canto, em cada
Moita, um pássaro canta à alma da gente...

Do meio dia ao sol, a caminhada
Já de um quase cansaço se ressente.
E em nossa fronte, em bagas perlejada,
Mede-se o esforço, cada vez crescente...

Descamba o sol. No topo da colina,
Olhando da subida os duros flancos,
A fronte se nos curva e ao chão se inclina.

E da escalada de urzes e barrancos,
A cabeça nos touca a poeira fina:
– O pó de prata dos cabelos brancos... p.109


POEMA DO ANO NOVO

O homem será sempre a mesma eterna criança,
A iludir-se de sonho e a viver de esperança!

Em cada ciclo anual, quanta desilusão
Lhe vem pungir a vida e o próprio coração!

Nem se lembra, talvez, que muito do que anseia
É, dos tempos de crianças, um castelo de areia...

Nem se lembra, por certo, à hora de sonhar,
Que o sonho da ilusão é amargo, ao despertar!...

Continua sonhando, a querer iludir-se,
Esquecido que a vida é feiticeira Circe,

A transformar em mal todo bem que logremos,
Em fel a converter algum mel que libemos...

Assim, quando a ventura à porta, de mansinho,
Nos bate, qual temendo acordar mau vizinho,

Não tarda que a desdita, a, de longe, espreitar,
Nos venha, só de má, o bem arrebatar...

Se a alegria nos chega, em visita, bondosa,
A tristeza se apressa a surgir, invejosa...

Se o riso nos aflora à pétala dos lábios,
Pronto as lágrimas vêm, com amargos ressábios...

Se a paz espiritual faz morada em nossa alma,
É preciso lutar, para ter essa palma!

Se a bondade reside em nosso coração,
Fazendo-nos querer a outrem como irmão,

A perversa maldade a descrer do altruísmo,
Julga impuro esse afeto e ri-se com cinismo...

Se o prazer nos ilude, em momentos felizes,
Entrelaçadas nele a dor tem as raízes...

E é sempre assim. Por mais que busquemos ventura,
Tudo quanto é pungente a ela se mistura.

No entanto, o sonhador continua sonhando,
Perdendo a ilusão, outra ilusão buscando;

Buscando a borboleta estranha da esperança,
Que alimenta de sonho a mesma eterna criança...

E atrás da borboleta ilusória e erradia,
Da túnica da vida ele a trama desfia...

ANO NOVO, que vens, qual borboleta iriada,
Novos sonhos trazendo em cada dia, em cada

Instante, – sê, por Deus! o eterno semeador:
– Multiplica ilusões ao pobre sonhador!... p.113-114


SUPLÍCIO

Num mundo vegetal, também, dramas se passam,
Pungentes, silenciosos,
Como tantos, cruciantes, dolorosos,
Que ora esmagam nossa alma,
Ora a rechaçam,
Sem que, exteriormente,
A máscara da face, sempre calma,
Transpire a mágoa ingente,
Que lhe dói,
A angústia inenarrável, que a corrói...

Assim, a “OEIRANA”
– “SALIX HUMBOLDTIANA”

Acorrentada ao seu destino amargo,
De eterna prisioneira
Da gleba ribeirinha em que nasceu,
E medrou, e cresceu,
– Tântalo vegetal
Padece a mágoa
Torturante, assassina, indizível, letal,
Que se prolonga uma estação inteira:
– De ver passar, ao pé de si, tanta água,
Que o rio vai levando,
Vai levando,
Enquanto, em gesto largo,
De súplica e humildade,
Como esmoler, que implora a caridade,
– Ela estende convulsa, os hirtos braços,
No anelo de quem quer fecundante abraços,
À liquida corrente,
Que passa indiferente,
Deixando-a a padecer a agonia inumana...
– Pobre e mísera “OEIRANA”! p.116


VELEIRO BRANCO

Veleiro branco, veleiro branco.
Que, ao longe, passas, riscando o mar,
Tuas velas pandas ao vento franco
Parecem asas a voejar.

Parecem asas cortando o azul,
Enquanto o azúleo mar vais cortando,
Veleiro branco, que o rumo sul
Sereno e calmo vais demandando.

Tuas velas brancas, pandas ao vento,
Parecem asas cortando os céus;
Parecem aves no firmamento;
Parecem lenços dizendo “adeus”.

Parecem braços, que se distendem,
Num gesto largo, num aceno nudo
De mãos trementes, que se desprendem,
Frias, silentes, dizendo tudo...

Parecem lenços que, ao longe, acenam
Um “adeus” dorido, de despedida...
Parecem sombras de almas, que penam
O “adeus” eterno, por toda a vida... p.130


POEMA DA SAUDADE INFINITA

Ah! Como eu gostaria de rever
A bem querida terra dos meus sonhos,
Os meus pagos risonhos,
A maloca nativa,
A querência da infância,
Perdida na distância,
– Mais do tempo impiedoso, e não no espaço,
Já que vai longe a minha meninice...

Vestindo o escafandro da saudade,
A memória mergulha no passado,
E eu revejo – olhos d’alma enamorada –
O modesto lugar em que nasci:

À beira rio, de águas turvas e barrentas,
– O “seringal”, de vida remansosa,
Todo poesia e encanto, aos meus olhos tranquilos...

Embora infrene a luta dos maiores.
Contra o meio telúrico, bravio,
Da selva hostil;
E esta a obstar, em vão, a incontida avançada
Em busca dos recônditos tesouros
Da “hévea” nativa,
– Em derredor de mim,
Alma povoada de candura,
Tudo sorria o riso da inocência...
Tudo cantava um canto de ternura...

Pelos campos olentes,
De moitas florescentes,
– O pipilo, o gorjeio, canto de mil aves,
Em plena liberdade,
Entoando ao Criador
Suas canções de amor...

À margem da corrente fluviar,
De águas cantantes, quérulas, viageiras,
– As “oeiranas” debruçadas a mirar-se
No espelho da linfa transeunte,
Quais ondinas vaidosas e brejeiras...

A assistir-lhes ao banho,
– As vigilantes “canaranas” ribeirinhas
Leques abertos, farfalhando ao vento...

Nos “repiquetes”, de águas novas, turbulentas,
“Balseiros” deslizando ao léu, sem rumo...

Ao primeiro sinal do escassear da linfa,
– A esponjosa flor da espumarada,
A dançar, “de bubuia”, à correnteza...

Como tudo era lindo, aos meus olhos infantes,
Tranquilo o coração, só inocência n’alma!
A vida era um sorriso, e o carinho materno
A transfundir bondade em meu ser ainda insonte...

Agora,
Repassando do tempo a dura caminhada,
(Quantos sonhos desfeitos!
Quantas sofridas mágoas!)
– Eu bem quisera ver-me, como outrora,
A banhar-me naquelas doces águas
Do meu rio da infância,
Com o coração sorrindo para o mundo,
Na ingênua mansidão daquela idade,
Como se só amor ele tivesse a dar-me,
Ao invés da tristeza, em que me inundo... p.148-150


OLIVEIRA, Mário de. Jardim Fechado. Rio Branco: Departamento de Imprensa Oficial, 1971.

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