As denúncias propagadas em folhetos, por José
Carvalho e periódicos amazonenses, atreladas à prepotência, autoritarismo e
desrespeito procedidos pelo Ministro José Paravicini no rio Acre, teria repercussão
desastrosa para a Bolívia, em Manaus, Belém e no Rio de Janeiro – Distrito
Federal.
A propagação referia-se ao decreto expedido
pelo autoridário boliviano, como delegado de seu governo, abrindo os rios
brasileiros à navegação dos países amigos da Bolívia, em detrimento do Brasil,
incitando navios estrangeiros a violarem a soberania territorial brasileira.
Funcionários brasileiros, como o Chanceler
Olinto de Magalhães, posicionaram-se contra as medidas bolivianas, argumentando
que o Brasil jamais permitiria que navios estrangeiros navegassem pelas suas
águas para Puerto Alonso.
Os precedentes relacionados à história
acreana são recheados de perplexidades, com fatos ligados e entrelaçados como
teias de aranhas.
Enquanto os ânimos nortistas manifestavam-se
em pública e notória ebulição, eis que surge, no Cais de Belém, como num passe
de mágica, sem ninguém esperar, uma canhoneira americana, denominada “Wilmington”. Até aí corre tudo com certa naturalidade de
aparente visita turística.
Em Manaus, porém, transgredindo normas, o
comandante da canhoneira tomara a decisão de, sem autorização do governo
brasileiro, partir do cais a noite, de maneira evasiva, com os faróis apagados
e dirigir-se ao rio Solimões, subindo até ao município amazonense de Tabatinga
e, posteriormente, a Iquitos, no Perú.
Ao retornar, o comandante da canhoneira teria
sido alvo de severas críticas relativas à sua conduta, provocando comícios
públicos e condenação geral pelo atrevido procedimento.
Única
fotografia conservada de Luis Galvez antes de 1900. |
Encontrara-se em Belém, quando da chegada da
belonave americana ao porto paraense, um “freelance”
espanhol, interessado em produzir reportagens acerca da instalação da alfândega
em Puerto Alonso. Trata-se de Dom Luiz Galvez Rodrigues de Aria.
Nascido em Cádiz, Espanha, a 20 de fevereiro
de 1859, filho do Almirante da Marinha Real, Fernando Luiz Galvez Concepcion de
Aria e de Rosaura Rodrigues de Aria, de prendas domésticas, Dom Luiz Galvez,
talvez seduzido pela imensidão da baía de Cádiz, vista do mirante de sua residência,
cedo começara a viajar pelo mundo.
Aos vinte anos de idade fazia o curso de
Ciências Jurídicas e Sociais e
complementava os estudos aprendendo
conversação em inglês, francês e português, o que viria dominar com
desenvoltura e imperceptível sotaque.
Passou a juventude boêmia, andando com os guitarristas pelas bodegas do
Alcazar, uma mocidade de modo tradicional, entre vinhos, mulheres, feiras,
danças flamengas, porém sem descuidar-se
dos estudos.
Em 1889 estava servindo na diplomacia
espanhola em Roma, seguindo daí, três anos depois, para Paris, a cidade Luz,
que encontrara-se sacudida por atentados anarquistas. Posteriormente fora
designado para servir em Buenos Aires, onde, em 1896, viria envolver-se em um
assassinato, quando, por questão passional, fora levado a um duelo, ocasião em que tirara a vida do
duelista adversário, que por sinal seria irmão de sua namorada.
Demitido do corpo diplomático espanhol, Dom Luiz
Galvez fora obrigado a abandonar a Argentina em quarenta e oito horas. Em 1897 chegara a Belém, onde permanecera até
1898. A passagem de ano de 1898 para
1899 fora comemorada num vapor, em frente à cidade de Parintins, no Amazonas,
depois de Dom Luiz Galvez envolver-se em flagrante com
uma freira, numa efetiva copulação, quando viajava como clandestino, em um barco fretado por
religiosos, fazendo o mesmo trajeto Pará-Amazonas. Escandalizados, os superiores sacerdotais
desembarcaram os dois em Santarém, de onde prosseguiriam em outro vapor para
Manaus.
O retorno de Dom Luiz Galvez a Belém
prendia-se, em princípio, em obter uma entrevista substanciosa com Dom José
Paravicini, que ainda encontrara-se na capital paraense com destino ao Rio de
Janeiro, sobre suas atividades em Puerto Alonso e a consequente instalação do
posto alfandegário para fiscalizar e cobrar tributos nos rios brasileiros.
As repercussões da questão do Acre
condimentadas com a afronta gerada pelo
comandante da canhoneira americana, “Wilmington”,
já constituíam ótimos ingredientes para aguçar o espírito agitado e de controvérsias, bem ao agrado do aventureiro.
Envolvido nos dois assuntos, que por sinal eram
os que propalavam-se nos quatro cantos das duas capitais amazônicas, a vida de
Dom Luiz Galvez era bem ao seu gosto, de
cabarés a refinados salões, de humildes
cafés a requintados banquetes.
Colhendo informações, umas aqui outras ali, o
irrequieto espanhol vai exercendo sua atividade de “freelance”, sempre relacionando seus contatos aos seus objetivos.
Entre seus interlocutores, Dom Luiz Galvez cultivara maior aproximação a um patrício
seu que prestava serviços ao Consulado boliviano. Trata-se de Guilherme Uhtholf, que exercera a
função de Comandante-Geral da fronteira em Puerto Alonso, e acompanhante do
Ministro Paravicini.
Dom Luiz Galvez, além de atuar como “freelance”
para jornais paraenses também logrou espaço para prestar assessoria no
Consulado da Bolivia, graças ao seu preparo intelectual e a irmandade do
idioma. Dada a intimidade dos dois espanhóis, Dom Galvez ficou sabendo que o
Ministro José Paravicini estaria tratando, secretamente, de celebrar um acordo
com os Estados Unidos, tendo encarregado a Guilherme Uhthoff de estabelecer as
bases e apresentá-las ao cônsul americano. Tal documento deveria seguir para
Washington pela canhoneira “Wilmington”,
ancorada no porto de Belém, de regresso de sua clandestina e acintosa viagem por
águas brasileiras até a fronteira com o Perú, sem permissão do governo
brasileiro.
Em Manaus haviam-se iniciado as manifestações
de rua, levadas a efeito por estudantes e populares, refletindo um sentimento generalizado
de defesa do patrimônio ameaçado por bolivianos intrusos, usurpadores,
considerados nocivos e perigosos para a integridade nacional.
O governo do Amazonas fez chegar às mãos do
Presidente Campos Sales uma longa exposição dos fatos que se passavam no Acre,
assim como as visíveis consequências da perda da região para a Bolívia. No
citado documento enviado ao Presidente da República, o governo amazonense insinuara
a possibilidade de eclodir, a qualquer instante, um movimento armado.
O Presidente Campos Sales não tomou a mínima
providência, muito menos deu conhecimento a seu “staf” do conteúdo do
documento.
Já introduzido no mundo social e jornalístico
de Belém, inclusive participando da assessoria do consulado boliviano, Dom Luiz
Galvez interessara-se em obter acesso ao teor do plano, cujas bases consistiriam
em que os Estados Unidos auxiliariam a Bolívia para conservar sua soberania ao
longo dos rios Purus, Acre e Iaco, mediante concessões aduaneiras e
territoriais, com o agravante do fiel compromisso americano em fornecer amparo financeiro e pesado armamento como
precaução, à vista eclodir uma guerra entre Brasil e Bolívia.
Na qualidade de detentor de fluente conhecimento
da língua inglesa, Dom Luiz Galvez oferecera-se para preparar a devida versão do
aludido documento para o inglês, no que foi aceito.
Durante o transcurso da versão o espanhol
percebeu que estava diante de um assunto que contrariava bastante os interesses
brasileiros. Denunciar aos quatro cantos um trágico plano, digno de uma
condenação pública é, de certa forma compreensível. Entretanto, assumir
atitudes ao ponto de trair seus atuais patrões, detentores de seus próprios princípios,
inclusive a fraternidade da língua e postar-se, não só na defesa de uma pátria
que acabara de conhecer, mas promover e comandar a expulsão dos invasores, é um
procedimento de difícil compreensão. Pois ocorrera desta forma: Dom Luiz Galvez
exonerara-se da assessoria ao consulado da Bolívia e regressara a Manaus, onde
publicara reportagens sobre a ocupação intempestiva dos bolivianos, enquanto
era revisto e estudado, para uma perfeita interpretação o texto do Tratado de
Ayacucho. Adicionara às denúncias, o caso da canhoneira americana e, sobretudo,
o plano da intervenção diplomática e armada americana ao longo dos rios
acreanos, em favor da Bolívia.
A fronteira não estava ainda determinada e
somente em 1895 os governos do Brasil e da Bolivia deram início à negociação neste
sentido. Há quase trinta anos os brasileiros ocupavam, de maneira efetiva, os
rios Purus, Alto Acre e Iaco. Fundado nesta ocupação, possuía o Brasil,
independente de qualquer outro título, o ‘UTI
POSSIDETIS’, um princípio do Direito Internacional.
Seria esse princípio jurídico internacional o
argumento a justificar o posicionamento de um espanhol, residente há apenas
dois anos, de defender a soberania de um país totalmente estranho, no que
concerne às estações climáticas, aos
costumes, à língua e gírias diversificadas, a tudo afinal? Quando da apressada fuga de Buenos Aires, o
espanhol pensara em seguir para a India, estabelecer-se em Macau ou viver na
Indonésia. No Rio de Janeiro, porém, um compatriota seu, de Bilbao, convencera Dom
Luiz Galvez a vir para a Amazônia, pois houvera ficado milionário no Amazonas.
Leia aqui a série
* José Augusto de Castro e
Costa é cronista e poeta acreano. Mora em Brasília e escreve o Blog FELICIDACRE.
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