sexta-feira, 10 de agosto de 2012

A ERA DOS FESTIVAIS / continuação

Luiz Felipe Jardim

Intervalo 

Olá, bem vindos ao bat blog. Como estamos um pouco adiantados à bat hora, antes de entrarmos nas paisagens dos festivais propriamente ditos, iremos a um breve intervalo, a uma suave digressão, um breve equivalente a um necessário... ai, ai, ai e maçante comercial...

Pablo Picasso - Maya com a boneca
A popularização, nos anos 50 e 60, de uma linguagem infanto-juvenil saída do universo das revistas em quadrinhos e da TV, como a que inicia esse texto, faz parte de um importante e demorado processo pelo qual vem passando a humanidade. Grosso modo, trata-se de um processo de ‘infantilização’, do ser humano ao que os especialistas chamam de Neotenia.

A palavra neotenia significa algo como ‘extensão do novo’. Por isso, nas biologias diz-se de espécies em que os indivíduos levam para a vida adulta, para a maturidade sexual, características físicas de sua fase infantil ou larval. Estendem o seu ‘novo’ à vida adulta. Por exemplo: a nossa espécie nasce com 23% do tamanho de um cérebro adulto, e este cérebro só irá parar de crescer depois de 23 anos, ou seja, o nosso cérebro continua a crescer mesmo depois de atingirmos a maturidade sexual, e por mais de dez anos.

Os processos neotênicos fixaram em nossa humanidade a atração pelo novo, pela novidade, a neofilia, característica que é muito forte entre os primatas, que fazem disso motivo para grandes divertimentos e mesmo para alargamento de áreas contínuas de exploração. Mas não vai muito além.

Na espécie humana as coisas ficam bem diferentes. A neofilia, a atração pela novidade, o fascínio pelo novo é muito mais do que simples brincadeira. É uma qualidade sem a qual o homem não teria sobrevivido nas selvas da evolução. O fascínio pelo novo é também responsável por grande parte de nossa curiosidade e dos nossos estímulos exploratórios. Por isso levamos à vida adulta, a curiosidade e o sentido de divertimento e satisfação que esta nos provoca quando crianças. Assim, quando adultos, continuamos curiosos, exploradores e nos divertimos com isso.

O Homem precisa iludir-se para imaginar. Precisa brincar mesmo que responsavelmente, seriamente. O sentido original da palavra, iludir é exatamente esse: recrear, praticar o lúdico. O que é o teatro, ou o cinema, senão uma grande ilusão, um bom divertimento onde uns fingem que são e outros fingem que acreditam? O que é a pesquisa científica senão a curiosidade infantil levada à vida adulta e que, à semelhança do típico voyeur, perscruta as fendas das realidades na busca de paisagens ocultas? O que é o esporte de alto nível senão as velhas brincadeiras - correr, saltar, jogar bola - praticadas em alto nível?

Magritte - The Big Family
Na vida adulta o Homem continua a ‘brincar’ para imaginar e inventar facas de pedras, roupas de couro, anzóis de ossos, e anzóis Pereira em geral. Precisa brincar de ser para ser criativo, para inventar o que não existe na natureza como as letras e os números. Ou seja, para explicar as realidades, para dizer à sua companheira que aquela montanha é uma montanha, o homem inventa coisas que não existem – as letras, as palavras, os números. Com essas coisas que não existem verdadeiramente, ele diz: aquela montanha é uma montanha.  Depois conta histórias sobre a montanha. Canta canções e fala das musas que nela habitam. Pinta quadros que a representam. Poeta sobre suas flores, sobre seus bosques... Enfim, produz coisas que não existem... Até começar a andar de trem a vapor em volta da montanha.  Aí as coisas começam mudar um pouco mais. 

Uma das consequências mais evidentes provocadas pela chamada Revolução Industrial, foi a do imenso crescimento da população de humanos pelo planeta. Há pouco tempo, já nesse século, atingimos a marca dos sete bilhões de habitantes e a população de pessoas que vivem em cidades ultrapassou a das pessoas que vivem em áreas do campo. Isso nunca acontecera em mais de um milhão de anos, é algo absolutamente novo para a humanidade. Há ‘apenas’ dez mil anos, a reunião de mil pessoas em um só lugar era absolutamente improvável.

O desenvolvimento médico sanitário surgido com a Revolução Industrial propiciou um significativo aumento da esperança de vida para o Homem. Em 1500 a expectativa de vida de um europeu era quase a mesma de um nativo americano. Por volta de 40, 35 anos de idade. Hoje o europeu tem esperança de vida de mais de 80 e os brasileiros de mais de 75 anos. Em 500 anos dobramos uma marca que mantínhamos por centenas de milhares de anos.

O aumento da expectativa de vida torna relativamente desnecessário um mecanismo biológico/cultural que nossa espécie tem usado com sucesso todo esse tempo, (e que faz a felicidade dos mais acesos): o do crescei e multiplicai-vos... muito. Precisávamos de filhos. Muitos filhos. A grande maioria morreria antes dos oito anos de idade. As ‘mocinhas’ casavam-se muito cedo com os rapazes que também se casavam muito cedo. Era preciso garantir a reprodução da nossa espécie que sempre foi rara em quase todos os momentos da pré-história. Casávamo-nos muito cedo e começávamos a ‘povoar o mundo’ muito cedo para garantir a continuidade dos gens/clãs/espécie. Feito isso, morreríamos muito cedo também. Trouxemos conosco essa herança e agora nos deparamos com um dilema: o que fazer quando a natureza, aí pela curva dos nossos 12, 13 anos se põe a pulsar e a gritar insistentemente nos nossos ouvidos inconscientes: ‘me refaça, me refaça, ME REFAÇA’, e eu já não preciso de tantos filhos, já não preciso ‘refazer’ e ‘repor’ a natureza tão urgentemente?

No estojo de curativos da humanidade está a matusalênica novidade: a neotenia. Na caixa neotênica está o antigo bálsamo: a neofilia, o velho fascínio pelo novo. 

 “Tudo é ilusão, sonhar é sabê-lo”, dizia Fernando Pessoa. Aí, o Homem sonha mais uma vez e ilude sua natureza de maneira realmente fantástica: prolonga artificialmente sua infância. É um verdadeiro ovo de Colombo (que, aliás, parece que estava em moda naquelas épocas): se não preciso de tantos filhos, aumento o tempo em que os filhos que já tenho ficarão comigo. Ou seja: tenho menos filhos, mas, em compensação, eles ficam mais tempo junto a mim, em família, se preparando para a vida adulta. Prolongo, assim, o tempo de sua ‘infância’.

Em 1762, Rousseau, em seu livro Emilio, dizia “o intervalo entre infância e vida adulta deveria ser prolongado... O período em que a educação em geral terminou é exatamente a hora de começar”.

A percepção de Rousseau era realmente genial. Quando do franco aparecimento das sociedades de massa em meados do séc. XIX, os principais países da Europa e EUA, desenhavam políticas públicas voltadas para a juventude. A humanidade percebia que a idade adulta não vem imediatamente após a infância.

Van Gogh - Noite Estrelada
Cem anos após Rousseau e o início da Revolução Industrial, na segunda metade do séc. XIX e começos do séc. XX, as grandes cidades do mundo tinham suas paisagens físicas, sociais e culturais completamente alteradas. As sociedades de massa nasciam e cresciam vertiginosamente. Nos EUA, entre 1880 e 1910, o total da população urbana triplicou de 14 para 43 milhões de pessoas. Grande parte constituída de crianças e jovens que ‘entravam num mundo’ que nem mesmo seus pais conheciam, já que grande parte era de origem rural, nacional ou estrangeira. A reação natural era a experimentação. O velho apego à novidade.
Um grande salto rumo à inovação.

As artes penetravam no mercado de massas que começava a existir. A criação artística se viu em terreno fértil e prosperou enormemente em vasta área do mundo ocidental atingindo níveis de internacionalização nunca antes alcançados. A fotografia ganhou movimento com o cinema. O Jazz nascia e já começava a invadir o mundo. Entre 1870 e 1890 o número de casas para teatro triplicou e saltou de 200 para 600 só na Alemanha. As condições para impressão de jornais e revistas tinham alcançado excelentes níveis, e os jornais alcançaram tiragens que totalizavam um milhão de exemplares nos EUA. As histórias em quadrinhos, as célebres tiras, quase todas cômicas, ganharam publicação diária nos jornais. Por volta de 1910, cerca de 26 milhões de pessoas iam ao cinema toda semana nos EUA, em 1915, esse público chegaria a quase a 50 milhões. Em Milão, havia 40 salas para cinema, e 500 em toda a Itália. Um dado interessante, é que 75% do público de cinema eram de homens adultos. De quebra, como o cinema até a década de 1920 não era ‘falado’, abriu espaço para dezenas de milhares de músicos pelo mundo que tocavam durante a exibição dos filmes. No Brasil, muitos bons músicos como Ernesto Nazareth, tocaram em cinemas. A educação de massas ganhava impulso, entre 1875 e 1914, o número de professores de primeiro grau aumentou em sete vezes na Inglaterra, e treze vezes na Finlândia. As artes populares estavam prestes a explodir no mundo. Mas a explosão que aconteceu foi bem diferente.

Aquele era um período de intensa militarização. A Alemanha, unificada e super industrializada, reclamava por seu ‘espaço vital’ no mundo, desestabilizando a velha ordem européia. De quebra inaugurou o ‘moderno’ recrutamento militar obrigatório, enquanto promovia com as demais nações frenética corrida armamentista.

Os argumentos e as justificativas usadas para seduzir e obrigar os jovens ao serviço militar soavam verdadeiramente apavorantes. Baseados, em certa medida, nas teses do tenente-coronel Von der Goltz (que já tinha mais de quarenta anos quando as fez) diziam que “a fase dos 18 aos 24 anos é a mais indicada para o serviço militar... o corpo está então com vigor suficiente para suportar dificuldades, e o soldado ainda está livre e sem grilhões... Eles escalam montanhas sem perceber a descida abrupta do precipício que há do outro lado. O seu amor pela aventura excita a sua ansiedade pela batalha... Só os jovens despedem-se da vida sem angústia...” Você se sentiria bem recebido, bem protegido por quem lhe acolhesse com essas idéias e... intenções?

Rapidamente todos os grandes países adotaram o recrutamento militar obrigatório, impondo a seus jovens um rigoroso processo de doutrinação militar que, prescindindo do desenvolvimento intelectual, realçava a coragem, a ferocidade, a valentia que o corpo poderia proporcionar. O jovem que não correspondesse às novas expectativas deveria ser considerado fraco, inferior, desprovido de força moral. Aqueles que criticavam a militarização da sociedade e a visível corrida pela produção e estocagem de armas passaram a ser taxados de ‘selvagens subumanos’ degenerados. Qualquer contra-argumentação ao militarismo triunfante deveria, portanto, ser execrada.

O resultado não poderia ser outro: três guerras mundiais.

Pablo Picasso - Esboço para o 14 de Julho
Os jovens sofreram violentamente o impacto das guerras. Exatamente no momento de entrar no mundo fora de casa cheio de novidades como eletricidade, automóveis, aviões, vacinas, cinema, etc. eles percebem que o mundo estava explodindo e que eles eram o alvo preferido nos três fronts que existiam: o do desenrolar dos combates; o‘doméstico‘, cidades vilas; e o ‘interno’, onde não havia batalhas diretas, mas estavam imersos no conflito que se desenvolvia com o novo conceito de “guerra total”, onde toda a população era envolvida nos esforços de guerra. Só na primeira guerra, morriam, em média, 5600 pessoas a cada dia. Cerca de 9 milhões de pessoas foram mortas, sendo 3 milhões de jovens de 14 a 24 anos. Na segunda guerra para cada combatente no front, havia 18 de apoio logístico. A guerra brutalizava a nova sociedade de massa da juventude.

Tanto ao fim da primeira como da segunda guerra, os americanos chegaram à Europa nada menos do que como ‘salvadores’. Um oficial francês assim falou: “todos tivemos a mesma impressão de que estávamos para ver uma maravilhosa transfusão de sangue”. Nos dois momentos, a entrada americana na Europa foi seguida de uma proliferação de novas idéias, de práticas e costumes diferentes, que transformaram a vida das pessoas seriamente afetadas pelos combates.

Warhol - Dollar Signs
O Velho Mundo estava destruído e o Novo ocupava a cena rapidamente. Sua força industrial, com quase dois terços da produção industrial do mundo, seu vigor cultural, atravessaram o Atlântico e o mundo passou a dançar uma nova música enquanto a Terceira Guerra tinha início. Era uma guerra diferente, silenciosa quase, sub-reptícia, fria, mas nem por isso menos danosa. Era uma guerra estranha, de uma arma só. Aliás, duas. Uma de cada lado da bipolaridade que se estabelecera. Não era a Guerra de Botões, o filme de 1962, mas podia terminar - já que havia começado - com um singelo apertar de botões. Era uma guerra diferente, que ao invés de começar com tiros, um único tiro seria suficiente para exterminá-la. E de quebra, tudo o mais.

A ‘Era dos Festivais’ surge nesse período. Com a Guerra Fria. Esse era também o momento em que, nas transformações ‘biológicas da humanidade’, a juventude ‘atingia sua maturidade’. O jovem se tornara definitivamente um segmento demográfico particular, com identidades definidas, com anseios próprios. Tinha novamente um mundo novo à sua frente, meio baleado, meio zonzo, é verdade, mas, enfim, um mundo novo onde poderia viver mais livremente seus ‘processos neotênicos e neofílicos’. A juventude não poderia, em sintonia com as tendências evolutivas da espécie, e com a consciência espiritual da humanidade, escapar esta oportunidade para o Homem.  As novidades surgidas quando do surgimento das sociedades de massa, como o cinema, a fotografia, a história em quadrinhos, o jazz, com suas novas formas ou misturado a outros ritmos como o rock, o jornal escrito, e agora falado e televisivo, eram agora instrumentos poderosos para as transformações que deveriam acontecer.

Magritte - O  Bom Presságio
As artes populares estavam prestes a explodir no mundo. E dessa vez aconteceriam realmente. A humanidade não só percebia que a vida adulta não vem logo após a infância, mas começava a compreender e a viver essa realidade. Mais ainda, começava a desconfiar que ela própria, a antiga  Humanidade, poderia estar saindo agora de sua velha... infância.

A reação natural era a experimentação. O velho apego à novidade.  Um grande salto rumo à inovação... E por falar nisso, você já viu o resultado do futebol de hoje? Já assistiu à novela? Já fez sua corrida? Já jogou vídeo game? Já assistiu ao filme? Lembre-se que, na atualidade, essas são atividades imprescindíveis na vida de todo... adulto. Mas não se sinta tão isolado, tão distante do mundo infantil por isso, essas são atividades imprescindíveis no dia-a-dia do mundo das crianças também. Ainda bem.


* Luiz Felipe Jardim – Professor de História 

Cenas do próximo capítulo

Um comentário:

Olivia Maria Maia disse...

Parabéns ao Isaac por nos possibilitar em seu blog, nos depararmos com um articulista do quilate do Felipe Jardim.
Felipe meu abraço de gratidão pelas informações tão valiosas trazidas de maneira competente.
Te admiro, menino!