Luiz
Felipe Jardim
Intervalo
Olá, bem vindos ao bat blog. Como estamos um pouco
adiantados à bat hora, antes de entrarmos nas paisagens dos festivais
propriamente ditos, iremos a um breve intervalo, a uma suave digressão, um
breve equivalente a um necessário... ai, ai, ai e maçante comercial...
Pablo Picasso - Maya com a boneca |
A popularização, nos anos 50 e 60, de uma linguagem infanto-juvenil
saída do universo das revistas em quadrinhos e da TV, como a que inicia esse
texto, faz parte de um importante e demorado processo pelo qual vem passando a
humanidade. Grosso modo, trata-se de um processo de ‘infantilização’, do ser
humano ao que os especialistas chamam de Neotenia.
A palavra neotenia significa algo como ‘extensão do novo’.
Por isso, nas biologias diz-se de espécies em que os indivíduos levam para a
vida adulta, para a maturidade sexual, características físicas de sua fase
infantil ou larval. Estendem o seu ‘novo’ à vida adulta. Por exemplo: a nossa
espécie nasce com 23% do tamanho de um cérebro adulto, e este cérebro só irá
parar de crescer depois de 23 anos, ou seja, o nosso cérebro continua a crescer
mesmo depois de atingirmos a maturidade sexual, e por mais de dez anos.
Os processos neotênicos fixaram em nossa humanidade a
atração pelo novo, pela novidade, a neofilia, característica que é muito forte
entre os primatas, que fazem disso motivo para grandes divertimentos e mesmo
para alargamento de áreas contínuas de exploração. Mas não vai muito além.
Na espécie humana as coisas ficam bem diferentes. A
neofilia, a atração pela novidade, o fascínio pelo novo é muito mais do que
simples brincadeira. É uma qualidade sem a qual o homem não teria sobrevivido
nas selvas da evolução. O fascínio pelo novo é também responsável por grande
parte de nossa curiosidade e dos nossos estímulos exploratórios. Por isso
levamos à vida adulta, a curiosidade e o sentido de divertimento e satisfação
que esta nos provoca quando crianças. Assim, quando adultos, continuamos
curiosos, exploradores e nos divertimos com isso.
O Homem precisa
iludir-se para imaginar. Precisa brincar mesmo que responsavelmente,
seriamente. O sentido original da palavra, iludir é exatamente esse: recrear, praticar
o lúdico. O que é o teatro, ou o cinema, senão uma grande ilusão, um bom
divertimento onde uns fingem que são e outros fingem que acreditam? O que é a
pesquisa científica senão a curiosidade infantil levada à vida adulta e que, à
semelhança do típico voyeur, perscruta as fendas das realidades na busca de
paisagens ocultas? O que é o esporte de alto nível senão as velhas brincadeiras
- correr, saltar, jogar bola - praticadas em alto nível?
Magritte - The Big Family |
Na vida adulta o Homem continua a ‘brincar’ para imaginar e
inventar facas de pedras, roupas de couro, anzóis de ossos, e anzóis Pereira em
geral. Precisa brincar de ser para ser criativo, para inventar o que não existe
na natureza como as letras e os números. Ou seja, para explicar as realidades,
para dizer à sua companheira que aquela montanha é uma montanha, o homem
inventa coisas que não existem – as letras, as palavras, os números. Com essas
coisas que não existem verdadeiramente, ele diz: aquela montanha é uma
montanha. Depois conta histórias sobre a
montanha. Canta canções e fala das musas que nela habitam. Pinta quadros que a
representam. Poeta sobre suas flores, sobre seus bosques... Enfim, produz
coisas que não existem... Até começar a andar de trem a vapor em volta da
montanha. Aí as coisas começam mudar um
pouco mais.
Uma das consequências mais evidentes provocadas pela chamada
Revolução Industrial, foi a do imenso crescimento da população de humanos pelo
planeta. Há pouco tempo, já nesse século, atingimos a marca dos sete bilhões de
habitantes e a população de pessoas que vivem em cidades ultrapassou a das pessoas
que vivem em áreas do campo. Isso nunca acontecera em mais de um milhão de
anos, é algo absolutamente novo para a humanidade. Há ‘apenas’ dez mil anos, a
reunião de mil pessoas em um só lugar era absolutamente improvável.
O desenvolvimento médico sanitário surgido com a Revolução
Industrial propiciou um significativo aumento da esperança de vida para o
Homem. Em 1500 a expectativa de vida de um europeu era quase a mesma de um
nativo americano. Por volta de 40, 35 anos de idade. Hoje o europeu tem esperança
de vida de mais de 80 e os brasileiros de mais de 75 anos. Em 500 anos dobramos
uma marca que mantínhamos por centenas de milhares de anos.
O aumento da expectativa de vida torna relativamente
desnecessário um mecanismo biológico/cultural que nossa espécie tem usado com
sucesso todo esse tempo, (e que faz a felicidade dos mais acesos): o do crescei
e multiplicai-vos... muito. Precisávamos de filhos. Muitos filhos. A grande
maioria morreria antes dos oito anos de idade. As ‘mocinhas’ casavam-se muito
cedo com os rapazes que também se casavam muito cedo. Era preciso garantir a
reprodução da nossa espécie que sempre foi rara em quase todos os momentos da
pré-história. Casávamo-nos muito cedo e começávamos a ‘povoar o mundo’ muito
cedo para garantir a continuidade dos gens/clãs/espécie. Feito isso,
morreríamos muito cedo também. Trouxemos conosco essa herança e agora nos
deparamos com um dilema: o que fazer quando a natureza, aí pela curva dos
nossos 12, 13 anos se põe a pulsar e a gritar insistentemente nos nossos ouvidos
inconscientes: ‘me refaça, me refaça, ME REFAÇA’, e eu já não preciso de
tantos filhos, já não preciso ‘refazer’ e ‘repor’ a natureza tão urgentemente?
No estojo de curativos da humanidade está a matusalênica
novidade: a neotenia. Na caixa neotênica está o antigo bálsamo: a neofilia, o
velho fascínio pelo novo.
“Tudo é ilusão,
sonhar é sabê-lo”, dizia Fernando Pessoa. Aí, o Homem sonha mais uma vez e
ilude sua natureza de maneira realmente fantástica: prolonga artificialmente
sua infância. É um verdadeiro ovo de Colombo (que, aliás, parece que estava em
moda naquelas épocas): se não preciso de tantos filhos, aumento o tempo em que
os filhos que já tenho ficarão comigo. Ou seja: tenho menos filhos, mas, em
compensação, eles ficam mais tempo junto a mim, em família, se preparando para
a vida adulta. Prolongo, assim, o tempo de sua ‘infância’.
Em 1762, Rousseau, em seu livro Emilio, dizia “o intervalo
entre infância e vida adulta deveria ser prolongado... O período em que a
educação em geral terminou é exatamente a hora de começar”.
A percepção de Rousseau era realmente genial. Quando do
franco aparecimento das sociedades de massa em meados do séc. XIX, os
principais países da Europa e EUA, desenhavam políticas públicas voltadas para
a juventude. A humanidade percebia que a idade adulta não vem imediatamente
após a infância.
Van Gogh - Noite Estrelada |
Cem anos após Rousseau e o início da Revolução Industrial,
na segunda metade do séc. XIX e começos do séc. XX, as grandes cidades do mundo
tinham suas paisagens físicas, sociais e culturais completamente alteradas. As
sociedades de massa nasciam e cresciam vertiginosamente. Nos EUA, entre 1880 e
1910, o total da população urbana triplicou de 14 para 43 milhões de pessoas. Grande
parte constituída de crianças e jovens que ‘entravam num mundo’ que nem mesmo
seus pais conheciam, já que grande parte era de origem rural, nacional ou
estrangeira. A reação natural era a experimentação. O velho apego à
novidade.
Um grande salto rumo à
inovação.
As artes penetravam no mercado de massas que começava a
existir. A criação artística se viu em
terreno fértil e prosperou enormemente em vasta área do mundo ocidental
atingindo níveis de internacionalização nunca antes alcançados. A fotografia ganhou movimento com o cinema. O
Jazz nascia e já começava a invadir o mundo. Entre 1870 e 1890 o número de
casas para teatro triplicou e saltou de 200 para 600 só na Alemanha. As condições para impressão de jornais e
revistas tinham alcançado excelentes níveis, e os jornais alcançaram tiragens
que totalizavam um milhão de exemplares nos EUA. As histórias em quadrinhos, as
célebres tiras, quase todas cômicas, ganharam publicação diária nos jornais. Por volta de 1910, cerca de 26 milhões de
pessoas iam ao cinema toda semana nos EUA, em 1915, esse público chegaria a
quase a 50 milhões. Em Milão, havia 40 salas para cinema, e 500 em toda a
Itália. Um dado interessante, é que 75% do público de cinema eram de homens
adultos. De quebra, como o cinema até a
década de 1920 não era ‘falado’, abriu espaço para dezenas de milhares de
músicos pelo mundo que tocavam durante a exibição dos filmes. No Brasil, muitos
bons músicos como Ernesto Nazareth, tocaram em cinemas. A educação de massas
ganhava impulso, entre 1875 e 1914, o número de professores de primeiro grau aumentou
em sete vezes na Inglaterra, e treze vezes na Finlândia. As artes populares
estavam prestes a explodir no mundo. Mas a explosão que aconteceu foi bem
diferente.
Aquele era um período de intensa militarização. A Alemanha,
unificada e super industrializada, reclamava por seu ‘espaço vital’ no mundo,
desestabilizando a velha ordem européia. De quebra inaugurou o ‘moderno’
recrutamento militar obrigatório, enquanto promovia com as demais nações frenética
corrida armamentista.
Os argumentos e as justificativas usadas para seduzir e
obrigar os jovens ao serviço militar soavam verdadeiramente apavorantes.
Baseados, em certa medida, nas teses do tenente-coronel Von der Goltz (que já
tinha mais de quarenta anos quando as fez) diziam que “a fase dos 18 aos 24
anos é a mais indicada para o serviço militar... o corpo está então com vigor
suficiente para suportar dificuldades, e o soldado ainda está livre e sem
grilhões... Eles escalam montanhas sem perceber a descida abrupta do precipício
que há do outro lado. O seu amor pela aventura excita a sua ansiedade pela
batalha... Só os jovens despedem-se da vida sem angústia...” Você se sentiria
bem recebido, bem protegido por quem lhe acolhesse com essas idéias e...
intenções?
Rapidamente todos os grandes países adotaram o recrutamento
militar obrigatório, impondo a seus jovens um rigoroso processo de doutrinação
militar que, prescindindo do desenvolvimento intelectual, realçava a coragem, a
ferocidade, a valentia que o corpo poderia proporcionar. O jovem que não
correspondesse às novas expectativas deveria ser considerado fraco, inferior,
desprovido de força moral. Aqueles que criticavam a militarização da sociedade
e a visível corrida pela produção e estocagem de armas passaram a ser taxados
de ‘selvagens subumanos’ degenerados. Qualquer contra-argumentação ao
militarismo triunfante deveria, portanto, ser execrada.
O resultado não poderia ser outro: três guerras mundiais.
Pablo Picasso - Esboço para o 14 de Julho |
Os jovens sofreram violentamente o impacto das guerras.
Exatamente no momento de entrar no mundo fora de casa cheio de novidades como
eletricidade, automóveis, aviões, vacinas, cinema, etc. eles percebem que o
mundo estava explodindo e que eles eram o alvo preferido nos três fronts que
existiam: o do desenrolar dos combates; o‘doméstico‘, cidades vilas; e o ‘interno’,
onde não havia batalhas diretas, mas estavam imersos no conflito que se
desenvolvia com o novo conceito de “guerra total”, onde toda a população era
envolvida nos esforços de guerra. Só na primeira guerra, morriam, em média,
5600 pessoas a cada dia. Cerca de 9 milhões de pessoas foram mortas, sendo 3
milhões de jovens de 14 a 24 anos. Na segunda guerra para cada combatente no
front, havia 18 de apoio logístico. A guerra brutalizava a nova sociedade de
massa da juventude.
Tanto ao fim da primeira como da segunda guerra, os
americanos chegaram à Europa nada menos do que como ‘salvadores’. Um oficial
francês assim falou: “todos tivemos a mesma impressão de que estávamos para ver
uma maravilhosa transfusão de sangue”. Nos dois momentos, a entrada americana
na Europa foi seguida de uma proliferação de novas idéias, de práticas e
costumes diferentes, que transformaram a vida das pessoas seriamente afetadas
pelos combates.
Warhol - Dollar Signs |
O Velho Mundo estava destruído e o Novo ocupava a cena rapidamente.
Sua força industrial, com quase dois terços da produção industrial do mundo, seu
vigor cultural, atravessaram o Atlântico e o mundo passou a dançar uma nova
música enquanto a Terceira Guerra tinha início. Era uma guerra diferente,
silenciosa quase, sub-reptícia, fria, mas nem por isso menos danosa. Era uma
guerra estranha, de uma arma só. Aliás, duas. Uma de cada lado da bipolaridade
que se estabelecera. Não era a Guerra de Botões, o filme de 1962, mas podia
terminar - já que havia começado - com um singelo apertar de botões. Era uma
guerra diferente, que ao invés de começar com tiros, um único tiro seria
suficiente para exterminá-la. E de quebra, tudo o mais.
A ‘Era dos Festivais’ surge nesse período. Com a Guerra
Fria. Esse era também o momento em que, nas transformações ‘biológicas da
humanidade’, a juventude ‘atingia sua maturidade’. O jovem se tornara
definitivamente um segmento demográfico particular, com identidades definidas,
com anseios próprios. Tinha novamente um mundo novo à sua frente, meio baleado,
meio zonzo, é verdade, mas, enfim, um mundo novo onde poderia viver mais
livremente seus ‘processos neotênicos e neofílicos’. A juventude não poderia,
em sintonia com as tendências evolutivas da espécie, e com a consciência
espiritual da humanidade, escapar esta oportunidade para o Homem. As novidades surgidas quando do surgimento das
sociedades de massa, como o cinema, a fotografia, a história em quadrinhos, o
jazz, com suas novas formas ou misturado a outros ritmos como o rock, o jornal
escrito, e agora falado e televisivo, eram agora instrumentos poderosos para as
transformações que deveriam acontecer.
Magritte - O Bom Presságio |
As artes populares estavam prestes a explodir no mundo. E dessa
vez aconteceriam realmente. A humanidade não só percebia que a vida adulta não
vem logo após a infância, mas começava a compreender e a viver essa realidade.
Mais ainda, começava a desconfiar que ela própria, a antiga Humanidade, poderia estar saindo agora de sua
velha... infância.
A reação natural era a experimentação. O velho apego à
novidade. Um grande salto rumo à
inovação... E por falar nisso, você já viu o resultado do futebol de hoje? Já
assistiu à novela? Já fez sua corrida? Já jogou vídeo game? Já assistiu ao
filme? Lembre-se que, na atualidade, essas são atividades imprescindíveis na
vida de todo... adulto. Mas não se sinta tão isolado, tão distante do mundo
infantil por isso, essas são atividades imprescindíveis no dia-a-dia do mundo das
crianças também. Ainda bem.
* Luiz Felipe Jardim – Professor de História
Cenas do
próximo capítulo
Um comentário:
Parabéns ao Isaac por nos possibilitar em seu blog, nos depararmos com um articulista do quilate do Felipe Jardim.
Felipe meu abraço de gratidão pelas informações tão valiosas trazidas de maneira competente.
Te admiro, menino!
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