A SAGA DE PAULO E DONZINHA
José Augusto de Castro e Costa
As cicatrizes decorrentes da
perda irreparável da esposa ainda
incomodavam o jovem, nos seus,
incompletos, vinte e cinco anos, de tal modo que ele a nada conseguia
adaptar-se. O casal havia experimentado uma breve convivência, tumultuada, em
vista da forte objeção dos familiares da
moça, mesmo após o nascimento do único filho. Logo a seguir, uma enfermidade
incurável, desestabilizara o que já
vinha se desgastando.
Em busca de melhores recursos para o tratamento médico da esposa,
Paulo desfizera-se de sua única
propriedade e deslocara-se para a
capital paraense. Ao aproximar-se da cidade de Breves, aquela enfermidade da
esposa consumara-se em tragédia
para o jovem, que, sozinho, tivera de tomar todas as providências relativas ao
funeral de seu ente querido, em terra estranha, por completo, cujo jazigo dificilmente poderia vir a ser visitado por ele ou por algum outro familiar, dado ao isolamento
de sua localização. Após as devidas soluções
ante o impasse, em menos de vinte e quatro horas, Paulo seguira no mesmo barco para Belém, onde permanecera por curto período, tentando colocar suas ideias em ordem, hospedando-se em república para rapazes.
Ao retornar a Manaus, o jovem, no alambrado
do navio, ia observando a travessia serena da Baía de Guajará e o estuário do
rio Tocantins, aproximando-se da Ilha de Marajó, seguindo pelos braços de rio,
os populares paranás, que a separam do
continente, formando um verdadeiro labirinto
de águas e de matas, que se fecham num
curto círculo, sem horizontes. Navegavam no Estreito de Breves.
O vapor, rompendo velozmente por dentro da
enorme floresta, quase a roçar-lhe os galhos, não poderia evitar que o pensamento do jovem voltasse para sua
esposa, cujo corpo ficara para sempre naquele município paraense. Depois de
muitas horas dessa extravagante navegação silvestre, após passar por Óbidos, o
navio atingira o Rio-Mar, que se expandia
e se bifurcava por entre grandes ilhas, onde até hoje se destaca a de Parintins, já em águas amazonenses.
Ao encontrar-se em Manaus, por uma razão ou
por outra, Paulo não conseguira estímulo
para fixar-se em nenhuma atividade que se lhe apresentara,
motivo pelo qual entrara em sério
conflito com seu tio Custódio, que o
havia criado desde os dez anos de idade, por haver ficado órfão de dona Adalgiza, sua genitora.
Corria o mês de janeiro de 1928, quando Paulino de Brito, o esposo de uma prima
sua, fora nomeado Juiz de Direito em Rio
Branco e, ao tomar conhecimento da situação por qual passava o jovem Paulo,
não só o convidara como o persuadira
a acompanhá-lo. Em termos de distração, a viagem à capital acreana contava um bom número de rapazes, seus conhecidos,
tanto amazonenses quanto paraenses, destacando-se o advogado, jornalista e
caricaturista Garibaldi Brasil, que com
o jovem dividira hospedagem na
pensão paraense, Aníbal Paiva, e outros, entre os quais, o poeta cearense
Quintino Cunha, que ia para Lábrea, e ao
chegar à foz do caudaloso Rio Negro, de
águas límpidas porém escuras, que não se misturam às águas
amarelas e turvas do Solimões, compôs a célebre poesia Encontro das Águas:
“Vê
bem, Maria, aqui se cruzam: este
È o Rio Negro, aquele é o Solimões.
Vê bem
como este contra aquele investe,
Como a
saudade com as recordações.
Olha
esta água – é negra como tinta
Posta
na mão é alva que faz gosto.
Dar por
visto o nanquim com que se pinta
Nos
olhas a paisagem de um desgosto”.
Que profundeza
extraordinária, imensa.
Que
profundeza mais que desconforme!
Este
navio é uma estrela suspensa
Neste
céu d’água, brutalmente enorme.
O barco Guanabara, com seus largos
corredores, para onde abriam os camarotes, que se estendiam em dupla fila
central até um vasto refeitório, tomara
o rumo do rio Solimões e subira-o até à segunda foz, entrando à esquerda
no não menos lendário rio Purus, cujo canal
era assinalado por uma linha de espuma e de paus que desciam de bubuia, formando um rebojo de troncos, o que constituía
um perigo fatal, que requeria grande atenção do prático.
Todo aquele cenário era, de certo modo,
novidade para muitos passageiros. O vapor
aportara brevemente, para carga e
descarga, à vila Floriano Peixoto, antiga Antimarí, na foz do rio do mesmo
nome, ainda no estado do Amazonas, para, logo a seguir, alcançar as águas do
rio Acre, chegando, algum tempo depois, a Porto Acre.
Numa bela manhã de fevereiro de 1928, um domingo de carnaval, o navio Guanabara,
saudando o povo acreano, fazia soar apitos característicos e contínuos, anunciando sua aproximação
festiva ao porto de Rio Branco.
Governava o Acre, por essa época, o advogado
Hugo Ribeiro Carneiro, que vinha-se notabilizando pela modernização que
impusera àquele Território, proporcionando novo visual urbanístico a Rio Branco e estampando
alegria fulgurante em seu povo,
que procurava manter sempre ativa a sua vida social, cultural e esportiva.
Logo à chegada, os visitantes foram
convidados para abrilhantarem o Baile Carnavalesco da Sociedade Recreativa
TENTAMEN, clube elite da cidade, que seria levado a efeito à noite daquele
mesmo domingo, abrindo os festejos de Momo.
Conforme programado, à hora marcada os rapazes compareceram ao clube, onde foram calorosamente
recepcionados pela diretoria e acomodados em local de destaque, de onde puderam apreciar, encantados, o ambiente do hig-life da cidade, as elegantes fantasias femininas e masculinas,
as mimosas senhorinhas em suas poses encantadoras, seus sorrisos fascinantes,
suas jovialidades e meiguices.
Não demorou muito para Paulo e Donzinha
descobrirem-se, acenderem a fogueira de seus olhares, chegarem-se o mais
próximo possível e, estimulados pelo embalo do maxixe e da marchinha, estabelecerem um certo
diálogo que perduraria por cinquenta e
nove anos. Para o desenvolvimento desse princípio dominante e sua
concretização, porém, fizera-se necessário algumas providências ao encargo da
moça. Por cultivar estreito relacionamento com a família do governador e
dotar-se de espírito diligente, Donzinha condicionou seu futuro casamento à oferta de um emprego
para seu noivo, o qual, em decorrência, fora nomeado, em abril de 1928,
Comissário Interino da Delegacia Auxiliar de Polícia do Território.
Três meses depois, o jovem fora transferido
para o gabinete do governador, sendo, em março de 1929, convidado a preencher
uma vaga no quadro de pessoal do Ministério da Fazenda, no qual se estabilizaria, fazendo carreira até aposentar-se, desenvolvendo suas atividades no
Acre e no Amazonas. Tal posto estava vago por conta da peculiaridade de seu
exercício, que deveria ser desenvolvido em locais de difícil acesso e aguda
insalubridade. Consta que o primeiro encargo que lhe fora atribuído, logo após o casamento, teria sido
o de responsável pelo Posto de Registro Fiscal Federal do Amônea, na foz do rio
Breu, na fronteira do Peru, distante
mais de duzentos quilômetros de Cruzeiro do Sul, em linha reta.
A
viagem constituíra-se numa verdadeira odisseia, pelo fato de somente poder ser
efetuada por via fluvial, de Rio Branco a Manaus, onde, em data incerta, seria
tomado um outro navio para subir o
Solimões, daí entrando no rio Juruá, para alcançar
Cruzeiro do Sul. Dessa cidade ao Amônea, Paulo e Donzinha, em vista da vazante do rio,
serviram-se de uma canoa, tripulada por
um elemento a utilizar um varejão, próprio para impulsionar a condução rio acima, o que contribuíra para alongar a viagem em mais de três meses, da origem ao destino.
Em 1931, Paulo fora autorizado a transferir o Posto Fiscal do
Amônea para Feijó, então município de Tarauacá, de onde suas atividades
passaram a abranger as áreas dos rios Juruá, Jordão e Envira, compreendendo Cruzeiro
do Sul, Tarauacá (ex-Vila Seabra) e Feijó.
Anos e anos naquele interior amazônico, enquanto
Paulo ocupava-se em fiscalizar a
circulação dos produtos extrativistas e outras
tarefas aduaneiras, Donzinha tratava da educação das crianças, lecionando
letras e canto orfeônico, formando coral de várias vozes, com quem ensaiava, já
que possuía conhecimentos musicais de violão, bandolim e órgão harmônico
(quando alguma capela o possuía). Nasce daí o forte vínculo com várias famílias
tradicionais da região, tais como a de Zeca Rabelo, dona Maria Mesquita, Dr.
Gualther Batista, Dr. José Potiguara da Frota e Silva, Dr. Dedé, Cambeiro,
Roque, Cunha, Angelo Silveira, Manuel Lino, Quirino Nobre, Mâncio Lima, e outros e outros.
Vinte anos depois estavam os dois de retorno
a Rio Branco, após terem feito histórias no Juruá, Envira, Purus,
Antimarí e em Porto Acre.
Na capital acreana, além dos serviços
alfandegários, Paulo dedicara-se ao
esporte, tendo colaborado para a fundação da Sociedade Desportiva Vasco da
Gama, chegando a ser um de seus primeiros presidentes, quando Donzinha, sempre no
afã de educadora, depois de lecionar no Grupo Escolar 7 de Setembro, oferecera todo
seu empenho na direção do Educandário Santa Margarida, por um longo período de
onze anos, até a partida definitiva para Manaus, acompanhando Paulo, que para aquela
cidade havia sido transferido.
Na capital amazonense Donzinha passara a exercer atividades na direção do
Educandário Gustavo Capanema, paralelamente ao seu trabalho no IPASE, enquanto Paulo, além de Fiscal da Alfândega,
desempenhava funções no Lions Clube de Manaus-Centro, o que, por destacar-se no
desenvolvimento de projetos de bem-estar social, fora homenageado
post mortem, pela Prefeitura Municipal de
Manaus, emprestando seu nome a uma rua
no bairro Japiim.
Por essas e outras é que Paulo sempre buscava
os versos de Quintino Cunha:
“Se
estes dois rios fôssemos, Maria,
Todas
as vezes que nos encontramos,
Que
Amazonas de amor não sairia
De mim,
de ti, de nós que nos amamos”!...
De salientar que Donzinha, ou melhor, Maria
Barbosa e Paulo de Castro e Costa eram amazonenses de nascimento, porém, por
acentuado amor, tinham historicamente, e
com muito orgulho, os corações acreanos.
* José Augusto de Castro e Costa é cronista acreano. Reside em Brasília. Neste blog, está escrevendo sua nova série intitulada HISTÓRIA QUE O ACRE ESCREVEU.
> Leia aqui outros textos de José Augusto de Castro e Costa.
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