sábado, 6 de julho de 2013

LOBISOLHOSNICE

Luiz Felipe Jardim


Olá, Adízia, tudo bem?
Você se lembra da Capitu? Aquela do 'olhar de ressaca', esposa do Bentinho, nascida dos fios macios das penas suaves e anavalhadas do Machado, lembra? Pois acho que encontrei, por acaso, algo curioso sobre ela e o seu Dom Casmurro.

É que por esses dias andei lendo o livro, vendo o filme - de 1928- e vendo em quadrinhos (tudo em boliviano) O Homem que ri, do Victor Hugo e...

No tempo em que vigorava a força da língua francesa na cultura do mundo, o cumpade Machado, aquele de Assis sem ser de verdade de lá - mas mesmo assim sendo o de Assis que ele era – ainda rapazinho, andou se agatanhando com o vernáculo francês, isto é, teve certo enamoramento pela língua dos galos. Eternamente enfebrecido pela paixão da curiosidade e sem dormir na pontaria, ele estudou, com um padeiro que veio da França, e aprendeu o francês bem aprendidinho. Sem ensoberbecências, aprendeu a tirar os pensamentos do juízo na língua francesa, e a mostrá-los falando, com direito a sotaque e tudo o mais.

Talqualzinho sapo dissimulado, de uma qualidade de raça que não mostra a língua que tem, mas astucioso que só, ele foi, devagarinho, devagarinho, se assapientando com as leituras que fazia, botando dentro do juízo mioludo dele as sapientices, as sabenças que colhia quando lia e que com os livros aprendia.

Depois, já bem assapientadinho, mas sempre magriçola, com aquela esguiês que o caracterizava, e sempre olhando para os lados e para tudo com os olhos mágicos da imaginação, ele resolveu fazer algumas misturâncias com o vernáculo de lá e o de cá, e danou a fazer tradução do francês para o português (atenção revisão: não é 'por tu, guei'), ou seja: ele fez a língua de cá a 'alvo' e a de lá a 'fonte'. Por isso, muita vez, enquanto escrevinhava os seus livros, sempre com as radiâncias que de suas penas emanavam, ele traduzia algumas obras do cumpade Victor Hugo para o português.

Do cumpade Victor Hugo você se lembra, né? Pois é aquele mesmo... Caboclo galo da gema, que faiscava luminâncias; sanhudo e opiniúdo que só (se assanhou com Napoleão III, foi exilado e depois recusou a anistia que este ofereceu); que tinha o órgão de pensação permanentemente grávido de imagens românticas e impressionantes que ele só conseguia dar vença de trazer à luz através das letras que reunia. E que letras! Mostravam as realidades tão dentro delas mesmas que, mirando e acertando o seu carnegão, nem pareciam ficção. O cumpade galo tinha o tutano com o lume e a luminescência do tutano de um Machado...

Não sei se Machado de Assis traduziu o "O homem que ri", mas com certeza ele leu, acho que até mais de uma vez, essa obra que Victor Hugo considerava o seu melhor trabalho de literatura.

No final da primeira parte da obra, o Homem que ri, ainda ‘menino na escuridão’, abandonado no inverno gelado dos seus dez anos, tinindo de tiririca e de frio, encontra a cabana de um homem chamado Ursus, que o acolhe. Ursus, o Philosofo, vive numa floresta e tem um lobo de companhia que se chama Homo (atenção revisão, o lobo é homo mesmo, viu? nada de hétero, por favor).

Bem, resumindo a ópera, na descrição que o galo Victor faz do lobo Homo, o amigo de Ursus que acolheu o Homem que ri ainda menino, ele diz que o lobo tinha 'um olhar oblíquo'...

Machado diz algo semelhante sobre Capitolina. Lembra?

Ele diz que Capitu tem os olhos "de cigana oblíqua e dissimulada"; “olhos de ressaca”.

Olhos de ressaca, à primeira vista, pode sugerir um olhar mortiço, semicerrado, causado pelo peso das pálpebras de quem está padecendo de um pesado ‘pós-pileque’; numa ‘segunda vista’ pode-se pensar que seja uma referência a ‘fúria’ do mar revolto, em ressaca, o que sugere ‘olhos agitados, travessos’; à ‘terceira vista’, olhos de ressaca pode insinuar inconstância, volubilidade, mutabilidade, portanto, olhos de olhar ‘indefinido, vago, misterioso’. Todas estas ‘sugestões’ combinam com a ideia de ‘cigana oblíqua e dissimulada’: inclinada, tortuosa, indireta, maliciosa, ardilosa. Todas estas ‘sugestões’ combinam com as impressões de ambiguidade, de ambivalência que temos do caráter e da personalidade que dão vida a Capitu, ao mesmo tempo em que alimentam as ambivalências, ambiguidades, incertezas que nos resultam da apreciação do seu comportamento.

Todas essas ‘sugestões’ também combinam com o ‘olhar oblíquo’ que tem o lobo, tanto o lobo Homo de Victor Hugo, quanto qualquer lobo real. Basta olhar para qualquer retrato de um lobo para se fazer esta constatação: semicerrado, ardiloso, ambíguo,  incerto, misterioso.

Capitu tem ‘olhos de cigana oblíqua e dissimulada’. Tem ‘olhos de ressaca’. Tem ‘olhar oblíquo’. Tem olhar de lobo.

O lobo tem o ‘olhar oblíquo’ ‘de cigana oblíqua e dissimulada’. Tem ‘olhos de ressaca’. Tem olhar de Capitu.

   Luiz


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