Samira Makhmalbaf dirigiu o filme “A maçã” (Sib, 1998, Irã / França)
quando tinha apenas 17 anos, sendo a mais jovem cineasta até hoje a concorrer a
prêmio no Festival de Cannes. “A maçã” narra a história verídica de duas irmãs,
Massoumeh e Zahra, trancafiadas em casa pelos pais - uma senhora cega e um
senhor desempregado - durante 11 anos, o que as levou a um processo de retardo
mental. A prisão domiciliar era justificada por uma passagem de um texto
religioso segundo o qual as jovens são como pétalas, que fenecem ao contato do
sol.
> Leia aqui o comentário completo do professor e escritor Wanderson
Lima.
A MAÇÃ
por Ruy Gardnier
O primeiro plano do filme não poderia ser
mais revelador de todo contexto do filme. Uma flor precisa ser regada, e uma
mão do alto do plano tenta jogar água de uma caneca, mas há algum impedimento
(fora de campo) que faz com que apenas um bocadinho de água consiga realmente
chegar a seu objetivo. De fato, A Maçã será a tentativa de fazer com que essa
flor possa ser regada livremente, que a mão que rega a planta possa ter toda a
liberdade. Um filme contra os entraves da liberdade? Também. O primeiro filme
de Samira Makhmalbaf surpreende menos pelo formato (mistura documentário-ficção
comum nos filmes do seu pai, Mohsen Makhmalbaf, mas originalmente criada por
Abbas Kiarostami a propósito do pouco conhecido Close-Up) do que pela sutileza
com que ela mostra seus personagens, com o intrincado e um tanto insólito
desenrolar dos acontecimentos.
A história da qual o filme parte nos é dita
logo no começo do filme: um pai prende suas duas filhas em casa porque a mãe é
cega. A partir de um abaixo-assinado organizado pelos vizinhos, o assunto passa
a ser conhecido pelos jornais e pelas autoridades. Uma assistente social é
designada para fazer com que os pais respeitem as definições da justiça: que às
meninas seja dada a liberdade. O que no começo parece pura idiossincrasia
paterna vai aos poucos se revelando como uma complicada teia de preconceitos,
fanatismo e jogos de poder. Primeiro vemos a justificação filosófica para
mantê-las presas: diz o Livro que as meninas são como pétalas de flor que se
desmancham em contato com o Sol. Depois, mais tarde, o verdadeiro motivo: o
domínio da mulher, cega, mas que aparece como a verdadeira força (do mal)
oculta no filme, uma força sem cara (ela aparece sempre encapuzada), para
defender o antigo modelo, em contraposição ao novo modelo, defendido pela
assistente social. Poderia-se dizer que A Maçã é um filme feminista? Parece que
não. O filme é, isso podemos dizer, um assunto de mulheres. De fato, elas são
tudo que move o filme, e os homens (o pai e o vendedor de sorvetes) estão na
história apenas como atualizadores de um sistema.
Mas há em A Maçã uma beleza bruta,
desconhecida. Beleza documental, uma função-Freaks (o filme de Tod Browning):
vemos as meninas embrutecidas pelo tempo de clausura — elas não falam direito
(quase uivam!), se movimentam estranhamente, não sabem utilizar o dinheiro...
Mas há algo que humaniza-as em primeira instância (e aí a função parece se
confirmar), imediatamente. É o sorriso delas, o gosto de conseguir sair pela
rua, de brincar selvagemente com as meninas mais ricas, de comer as maçãs
resultantes de sua primeira compra...
Fala-se muito de uma suposta ingenuidade do
cinema iraniano, de uma suposta sinceridade documental que é comum a todos os
filmes iranianos. Não se poderia imaginar mais bobagem! Se certos filmes do Irã
realmente assumem a forma lógica e estética de certos filmes do neo-realismo
(Ladrões de Bicicleta, por exemplo), como O Jarro e Gabbeh, o grosso dos
cineastas iranianos trabalha com o contrário da verdade, com a mentira. A
reconstituição, figura clichê do cinema americano, torna-se no cinema do Irã um
escalonamento de planos de interpretação possíveis (em A Maçã, os fatos
realmente ocorreram e os protagonistas são os mesmos na realidade e na ficção),
o cinema iraniano pode tornar-se um cinema da crueldade (Salve o Cinema) ou um
cinema nitidamente voltado para a mentira como principal modelo para chegar à
verdade (Kiarostami).
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