Murilo Mendes (1901-1975)
A Jorge
Burlamaqui
Me colaram no tempo, me puseram
uma alma viva e um corpo desconjuntado. Estou
limitado ao norte pelos sentidos, ao sul pelo
medo,
a leste pelo Apóstolo São Paulo, a oeste pela
minha educação.
Me vejo numa nebulosa, rodando, sou um fluido,
depois chego à consciência da terra, ando
como os outros,
me pregam numa cruz, numa única vida.
Colégio. Indignado, me chamam pelo número,
detesto a hierarquia.
Me puseram o rótulo de homem, vou rindo, vou
andando, aos solavancos.
Danço. Rio e choro, estou aqui, estou ali,
desarticulado,
Gosto de todos, não gosto de ninguém, batalho
com os espíritos do ar,
alguém da terra me faz sinais, não sei mais o
que é o bem nem o mal.
Minha cabeça voou acima da baía, estou
suspenso, angustiado, no éter,
tonto de vidas, de cheiros, de movimentos, de
pensamentos,
não acredito em nenhuma técnica.
Estou com os meus antepassados, me balanço em
arenas espanholas,
é por isso que saio às vezes pra rua
combatendo personagens imaginários,
depois estou com os meus tios doidos, às
gargalhadas,
na fazenda do interior, olhando os girassóis
do jardim.
Estou no outro lado do mundo, daqui a cem
anos, levantando populações...
Me desespero porque não posso estar presente
a todos os atos da vida.
Onde esconder minha cara? O mundo samba na
minha cabeça.
Triângulos, estrelas, noites, mulheres
andando,
presságios brotando no ar, diversos pesos e
movimentos me chamam a atenção,
O mundo vai mudar a cara,
A morte revelará o sentido verdadeiro das
coisas.
Andarei no ar.
Estarei em todos os nascimentos e em todas as
agonias,
me aninharei nos recantos do corpo da noiva,
na cabeça dos artistas doentes, dos
revolucionários.
Tudo transparecerá:
vulcões de ódio, explosões de amor, outras
caras aparecerão na terra,
o vento que vem da eternidade suspenderá os
passos
dançarei na luz dos relâmpagos, beijarei sete
mulheres,
vibrarei nos cangerês do mar, abraçarei as
almas no ar,
me insinuarei nos quatro cantos do mundo.
Almas desesperadas eu vos amo. Almas
insatisfeitas, ardentes.
Detesto os que se tapeiam,
os que brincam de cabra-cega com a vida, os
homens “práticos”...
Viva São Francisco e vários suicidas e
amantes suicidas,
e os soldados que perderam a batalha, às mães
bem mães,
as fêmeas bem fêmeas, os doidos bem doidos.
Vivam os transfigurados, ou porque eram
perfeitos ou porque jejuavam muito...
Viva eu, que inauguro no mundo o estado de
bagunça transcendente.
Sou a presa do homem que fui há vinte anos
passados,
dos amores raros que tive,
vida de planos ardentes, desertos vibrando
sob os dedos do amor,
tudo é ritmo do cérebro do poeta. Não me
inscrevo em nenhuma teoria,
estou no ar,
na alma dos criminosos, dos amantes
desesperados,
no meu quarto modesto da praia de Botafogo,
no pensamento dos homens que movem o mundo,
nem triste nem alegre, chama com dois olhos
andando,
sempre em
transformação.
MENDES, Murilo. Os Melhores Poemas de Murilo Mendes. Seleção Luciana
Stegagno Picchio. São Paulo: Global, 1994. p.24-26
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