Theodor W. Adorno (1903-1969)
Não há mais nada de inofensivo. As pequenas alegrias, as manifestações
da vida que parecem excluídas da responsabilidade do pensamento não possuem só
o aspecto de teimosa tolice, de um impiedoso não querer ver, mas se colocam de
imediato a serviço do que lhes é mais contrário. Até a árvore que floresce é
mentirosa no momento em que se percebe seu florescer sem sombra de sobressalto;
até o inocente “Que beleza!” torna-se expressão para a ignomínia da existência
que é diversa, e não há mais beleza nem consolo algum fora do olhar que se
volta para o horrível, a ele resiste e diante dele sustenta, com implacável
consciência da negatividade, a possibilidade de algo melhor. É de bom alvitre
desconfiar de condescendência em relação à prepotência do que existe. O maldoso
sentido oculto do aconchego, que antigamente se limitava à íntima e afável ação
de brindar, há muito apossou-se de impulsos mais amenos. A conversa casual com
o homem no trem, com quem manifestamos acordo através de um par de frases de
modo a evitar discussão e das quais sabemos que, no fim das contas, chegam a
ser um crime, já é até certo ponto traição; nenhum pensamento é imune à sua
comunicação e já é suficiente dizê-lo no lugar errado e num consenso falso para
minar sua verdade. De cada ida ao cinema, apesar de todo cuidado e atenção,
saio mais estúpido e pior. A própria sociabilidade é participação na injustiça,
na medida em que finge ser este mundo morto um mundo no qual ainda podemos
conversar uns com os outros, e a palavra solta, sociável, contribui para
perpetuar o silêncio, na medida em que as concessões feitas ao interlocutor o
humilham de novo na pessoa que fala. O princípio mau, que sempre esteve
escondido na afabilidade, desenvolve-se, no espírito igualitário, em direção à
sua plena bestialidades. Condescendência e falta de presunção são o mesmo.
Ajustando-nos à fraqueza dos oprimidos, confirmamos nesta fraqueza o
pressuposto da dominação e desenvolvemos nos próprios a medida da grosseria,
obtusidade e brutalidade que é necessária para o exercício da dominação.
Quando, na fase mais recente, o gesto de condescendência desaparece e só o
ajustamento se torna visível, é então precisamente, nesta completa ofuscação do
poder, que a relação de classe disfarçada se impõe da maneira mais implacável. Para
o intelectual, a solidão inviolável é a única forma em que ele ainda é capaz de
dar provas de solidariedade. Toda colaboração, todo humanitarismo por trato e
envolvimento é mera máscara para a aceitação tácita do que é desumano. É com o
sofrimento dos homens que se deve ser solidário: o menor passo no sentido de
diverti-los é um passo para enrijecer o sofrimento.
p.s. Herr Doktor, das ist
schön Von Euch: título tomado de um verso de Fausto
(I, 981), de Goethe, da cena do passeio do domingo de Páscoa. (N. do T.)
ADORNO, Theodor W. Minima Moralia: reflexões a partir da vida danificada. Tradução Luiz Eduardo Bicca. São Paulo: Ática, 1993. p.10-21
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