Theodor W. Adorno (1903-1969)
As pessoas estão desaprendendo a dar
presentes. Na violação do princípio de troca, há algo de absurdo e implausível;
muitas vezes, até mesmo as crianças examinam com desconfiança quem dá algo,
como se o presente fosse apenas um truque para vender-lhes uma escova ou um
sabonete. Em compensação, pratica-se a charity,
a beneficência administrada que, como um adesivo, tapa planejadamente as
feridas expostas da sociedade. Dentro dessa empresa tão organizada já não há
mais lugar para a emoção humana, a doação está necessariamente vinculada à
humilhação pelo ato de repartir, de avaliar exatamente, em suma, pelo fato de
tratar como um objeto aquele que é presenteado. Até o ato privado de dar
presentes foi rebaixado ao nível de uma função social que se efetua com uma
racionalidade contrariada, com base no cumprimento cuidado de um budget estipulado, numa avaliação
céptica acerca do outro e com o menor esforço possível. O verdadeiro ato de
presentear encontrava sua felicidade na imaginação da felicidade do recebedor. E
isso quer dizer: escolher, dedicar tempo, desviar-se de suas ocupações, pensar
no outro como sujeito: o contrário da negligência. Eis aí algo de que quase
ninguém mais é capaz. Na melhor das hipóteses, as pessoas presenteiam aquilo
que desejariam para si próprias, apenas um pouco piores sob alguns aspectos. A decadência
do costume de dar presentes reflete-se na embaraçosa invenção dos artigos para
presente, que se baseiam na pressuposição de que as pessoas não sabem o que
presentear porque, no fundo, não querem fazê-lo. Essas mercadorias são
desprovidas de toda relação com os seus compradores. Já eram artigos de encalhe
desde o primeiro dia. Algo semelhante ocorre com a ressalva relacionada com a
troca de artigos, que para o presenteado significa: – Aqui está sua tralha,
faça com ela o que quiser; se isto não lhe agradar, para mim é indiferente;
troque por outra. Ademais, em face do embaraço envolvido nos presentes
habituais, sua substitutibilidade exibe até um aspecto mais humano, porque aos
menos permite ao presenteado da algum presente a si mesmo, o que, porém,
implica ao mesmo tempo a absoluta contradição do ato de presentear.
Em vista da enorme abundância de bens
acessíveis até aos mais pobres, a decadência do costume de dar presentes
poderia parecer indiferente e sua consideração algo sentimental. Entretanto,
mesmo que na abundância isso fosse supérfluo – e isto é uma mentira, tanto
privada quanto socialmente, pois hoje não há ninguém para quem um pouco de
fantasia não possa encontrar exatamente algo que o alegre por completo –
restariam como carentes de presentear aqueles que não presenteiam mais. Neles se
atrofiam aquelas faculdades insubstituíveis que não podem prosperar no
isolamento da pura interioridade, mas apenas em contacto com o calor das
coisas. A frieza apodera-se de tudo o que fazem, da palavra amistosa que
permanece impronunciada, da consideração que não é praticada. Essa frieza acaba
repercutindo naqueles que emana. Toda relação não deformada, talvez até mesmo
aquilo que é conciliador na vida orgânica, é um dom. Quem se torna incapaz
disso por força da lógica da coerência faz de si uma coisa e deixa-se congelar.
ADORNO, Theodor W. Minima Moralia: reflexões
a partir da vida danificada. Tradução Luiz Eduardo Bicca. São Paulo: Ática,
1993. p.35-36
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