quarta-feira, 7 de setembro de 2016

EM CASA DE POETA, PÃO E POESIA NA MESMA BANDEJA

Eliana Ferreira de Castela


Potes, latas d´água,
Vento na poeira
Cantando, brincando,
Levantando a saia 
Da moça faceira.
Na manhã alegre, 
A criançada é alegre,
A pobreza é alegre,
Tudo é alegria!


Para quem sai do Acre até ao Ceará, da maneira que fizemos, nada melhor que dar uma paradinha no Maranhão, para despedir-se da Amazônia. O Maranhão reúne um emaranhado de ecossistemas, dentre eles a floresta amazônica, o que favorece a abundância de babaçu, juçara (açaí) e bacaba. Traz recordação do Acre, que já ficou muito lá atrás. Mas o Maranhão também é terra de meus antepassados.


Não há tempo pra chorar...
E não há nada mesmo a reclamar
Quando a gente vê 
O esplendor do dia.
Crianças tostadas,
Correm, pulam e cantam,
Fazendo zoeira.


Meu avô paterno era maranhense. Não me recordo se algum dia meu pai falou sobre ele, a não ser para dizer que ele era do Estado do Maranhão. Depois eu li na certidão de nascimento do meu pai, que meu avô se chamava João Magalhães de Almeida. Quando fui pela primeira vez a São Luis, em 1995, vi o sobrenome do meu avô, na identificação de um ônibus urbano, no itinerário constava, Avenida Magalhães de Almeida. Em 2015 descobri que também existe um município com o sobrenome dele.  Imagino que não seja em função dele ou de algum parente próximo, mas apenas imagino, pois nada sei sobre ele. Muitas vezes ao longo da vida esqueci os nomes dos meus dois avôs, isso é muito estranho, talvez seja pelo fato de eu não os ter conhecido… Será que justifica?

E a água do poço
Secando, secando,
Deixando irritadas 
As mães faladeiras
Que gritam e ameaçam
com as cordas dos baldes:
- Vem pra cá, menino,
Não seja teimoso!
Olha que eu te bato,
Grande preguiçoso!
Enche logo o pote
Que o tempo tem asa,
E urge roncando...



Mas vamos logo ao real motivo que nos fez parar em São Luis, que não foi nem pelo avô e nem pelas frutas, senão para visitar a Gracilene Pinto, a nossa Grace do Maranhão, e sem que pudéssemos prever, passamos com ela três dias, em intenso sarau, com muita poesia, músicas, leituras de nossos poemas e de outros autores. Mas a maior parte do tempo foi dedicada às leituras das obras de Grace, feita pela autora, que abriu muitos arquivos de seu computador, para compartilhar conosco a riqueza de seus escritos ainda não publicados, mas que precisam ser mostrados ao mundo, o quanto antes.

É o estômago avisando  
Que é hora do almoço.
- Virgem Nossa Senhora!
Marido chegando
E eu inda no poço,
Aqui com a comadre,
falando besteiras.
Cuida, minha filha!
Põe logo a rodilha,
Que eu te ajudo com a lata.

A extensa produção literária da escritora maranhense Gracilene Pinto foi uma surpresa. Mulher de expressão alegre e sorriso largo, que ao abrir a porta de sua casa para nós, disse – sejam muito bem vindos! Eu senti tanta verdade naquela acolhida, que embora, nunca tivesse antes, trocado com ela, uma única palavra, não tive dúvida que pisava um “território” seguro. Ali nasceu a oportunidade e motivação para muitas trocas poéticas que têm me estimulado na escrita. De lá para cá, já foram tantas palavras trocadas entre nós, que não poderíamos contar, assim como já demos boas risadas juntas.

Cuida, meu menino!
Que trabalho não mata,
Só ensina o individuo
A não ser marginal,
A construir seu destino
Fugindo do mal.
Vam´bora pra casa
Fazer o de cumê
Que a barriga sustente 
Pra sobreviver.

A conversa iniciava no café da manhã e sem intervalo, as tertúlias seguiam até a hora do almoço. Mas tinha uma hora que o corpo cansava, já era noite, as horas de sono eram apropriadas aos sonhos de Grace, que tem motivado muitas das suas obras. São viagens noturnas, nos braços de Morfeu que atravessa o Atlântico, para buscar em outros países histórias que alimentam a criatividade literária da escritora. Ela literalmente faz dos sonhos realidade, transforma-os em livros.
E o sol lá de cima,
Brilhando no azul,
Aumenta o esplendor
Para terra alegrar.
Como um anjinho louro, 
Aos pobres infantes
Estende seus raios
Para abençoar.

Foi o espírito poético, extramente jovial e a acolhida de Grace, que nos laçou de modo que, se não conhecemos São Luis, de outras passagens por lá, não teríamos conhecido a cidade, pois ficamos os três a poetar incessantemente por três dias, antes de nos lançarmos aos Lençóis maranhenses. Se por acaso, aquele tratamento tão amoroso deixasse alguma dúvida, seria dissipada quando Grace fez letrinhas de biscoito, com as iniciais de nossos nomes, “E” de Eliana e “M” de Mané do Café, meu companheiro Jorge, que já conhecia Gracilene pela internet. Como não era possível guardar os biscoitos, comemos com gosto, não sobrou migalhas, mas a imagem das letras, sob as mãos da poetisa ficará para a posteridade.
Biscoitos de Letrinhas feitos por Gracilene Pinto
 Fonte: Oliveira de Castela, 2015
 O poema distribuído ao longo deste capítulo, intercalando cada parágrafo é intitulado Retalhos da Infância, de autoria de Gracilene Pinto. Embora o poema no seu original não esteja escrito em estrofes, esta forma foi a licença poética que recorri, para representar aqui, os dias que passamos com Grace, quando qualquer outro assunto entremeava os poemas, sem que se perdesse a harmonia dos versos e nem a sequência dos assuntos. Sugiro aos leitores que voltem ao início deste capítulo para reler o poema inteiro e sem interrupções, como é o original. Qualquer pessoa que viveu sua infância na Amazônia ou no Nordeste irá se encontrar em cada verso.

Vento que faz dunas e molda pensamentos

Depois da casa da Grace, continuar no Estado do Maranhão objetivava conhecer o Parque Nacional dos Lençóis Maranhenses. Em meio à beleza das dunas e das lagoas, surgem muitas reflexões sobre a atividade turística e a população do entorno do Parque. Não se pode perder de vista as contradições, entre a prática da atividade turística e os impactos negativos que afetam o ambiente e as populações. Pois em meio aos problemas, pode-se ao mesmo tempo encontrar no turismo uma saída econômica, num local onde a oferta de emprego e renda é inexistente. Como essa conciliação será possível, é a questão.
Para sair de São Luis até Santo Amaro é necessário dois tipos de transportes, primeiro uma van, no trecho em que a estrada é asfaltada, até chegar à comunidade denominada “Sangue”, quando então é necessário tomar um transporte apropriado, com tração nas quatro rodas. Neste trecho a estrada é de areia, com pequenas dunas e o veículo serpenteia entre casas, vegetação, dunas, animais, e outras coisas. Os passageiros são sacolejados e precisam segurar firme para não saltar do carro. É uma estrada que requer conhecimento do trajeto e habilidade na direção do veículo.
Acesso ao Parque Nacional dos Lençóis Maranhenses
Fonte: Oliveira de Castela, 2015

Um ambiente com elevado potencial turístico como é o Parque dos Lençóis Maranhenses, tende a se promover melhorias para o acesso. Conforme nos informaram, já está prevista a pavimentação da estrada para Santo Amaro. Tais investimentos trazem mudanças. É preciso discutir o tema de manutenção de tradição e a inserção da modernidade local. Cabe perguntar como se faz essa discussão, numa região como o Nordeste brasileiro, que abriga a miséria como tradição? É algo complexo, corre-se o risco de cometer inúmeros equívocos, frente às contradições existentes.
Dunas e Lagoas, no Parque Nacional dos Lençóis Maranhenses 
Fonte: Oliveira de Castela, 2015
Outro questionamento é, até que ponto a pavimentação da estrada contribuirá para a redução ou o fim da miséria? Historicamente o que constatamos é que, após a melhoria de acesso, não só no meio rural, a população local é retirada, frente à valorização imobiliária das terras que antes era de pequenos produtores e que passam então, a ser ocupadas por empreendimentos do capital privado.
Como conciliar a manutenção do que há de bom na tradição, se na visão de quem é de fora ou das políticas desenvolvimentistas é completamente diferente do que pensa quem mora lá? Como é o caso de um senhor que viajou parte do trajeto conosco. E outras questões ficaram a “borbulhar”, querendo encontrar solução.
 A paisagem ao longo da estrada e até mesmo quando se chega ao centro de Santo Amaro, em minha opinião, remete-se a um passado distante. Estão ali cabritos e bois soltos pastando, tanto na estrada, como na praça. Assim como as casinhas de taipa cobertas de palha, algumas cercadas de forma precária, com finos pedaços de madeira é uma paisagem semelhante a descrita pelos escritores que falam do Nordeste, que li quando eu era adolescente, há mais de quarenta anos. Tudo bem que a paisagem conserve aspectos do meio rural, onde as mudanças ocorrem mais lentamente, mas mesmo no que seria urbano, como o centro da cidade, as condições não são muito diferentes. Aquele todo me agrada. Por que teria que ser diferente?
Casa na estrada de acesso aos Lençóis MaranhenseS
 Fonte: Oliveira de Castela, 2015
Embora passados muitos anos, de quando comecei a ler sobre a pobreza do Nordeste e em meio às mudanças ocorridas em função dos avanços da ciência e da tecnologia, percebe-se que os benefícios dos avanços são irregulares e seletivos. Fato que não ocorre apenas entre as regiões do país, mas também dentro de um mesmo Estado.
Os investimentos não vão ao encontro dos interesses das populações de todos os locais. Basta comparar as mudanças ocorridas nas cidades litorâneas, com as ocorridas nas cidades do sertão, neste, algumas características de mais de cinquenta anos atrás estão conservadas. Diferente da minha impressão, a paisagem não faz parte do passado, está ali diante dos meus olhos, composta por pessoas, algumas idosas com o olhar vazio ou crianças que parecem quietas. Todo o conjunto sugere uma letargia ou alheamento a um mundo mais moderno.  
Animais pastando, no centro de Santo Amaro - MA
Fonte: Oliveira de Castela, 2015
A nossa ignorância vê a paisagem e quer pensar a reaidade mas ela é apenas a cortina que oculta verdades. Por alguns momentos chega-se a desejar que aquilo tudo fique como está, porque assim será o “meu refúgio” de um mundo urbano agitado, insone, sem calma e com medo. Mas esse desejo é facilmente contestado por quem é de lá e sabe que fora dali existem outras oportunidades.
Quando fiz uma manifestação mínima de satisfação por aquele ambiente diferente, o senhor que viajava conosco, que me referi acima, trouxe ao debate a realidade de quem mora ali, isolado, com transporte caro e escasso, com as filhas que precisam dar continuidade aos estudos e têm que morar em outro lugar, para cursar o ensino médio, entre outras situações.
Aquele senhor arrancou-me da “zona de conforto” que eu me encontrava. Fazer aquela viagem a passeio é muito diferente do cotidiano dos que precisam transportar seus produtos e ter o lucro que já é pouco, ainda mais reduzido pelo preço do transporte, como observamos na negociação que outros passageiros faziam antes de tomar a condução, só para citar um exemplo. As ideias ficam como a areia ao vento, moldando e desfazendo dunas, frente às contradições.
O rio Alegre, no centro de Santo Amaro - MA
Fonte: Oliveira de Castela, 2015
Na entrada do centro de Santo Amaro, as águas do rio Alegre iluminadas pelo dourado pôr do sol, deu as boas vindas para nós que chegávamos àquele lugarzinho de poucos comércios, que na maioria não aceitam cartões de crédito e débito, onde algumas ruas cobertas de areia são intrafegáveis por carros, e estes são bem poucos naquele lugar, onde se pode andar à noite, no escuro e sem medo de sofrer qualquer ato de violência. Santo Amaro não é o único caminho para visitar os Lençóis, existe outro acesso, ou talvez outros, com estrada pavimentada e cidade com maior infraestrutura, mas esse não é o nosso caminho.


Leiam aqui as crônicas anteriores:
- Primeira: O início é no Cai N’Água

3 comentários:

Ronaldo Rhusso disse...

... E aqui vamos nós, agora pelos idos do Maranhão... Muita Poesia e o questionamento: "Modernizar e entregar ao dinheiro ou preservar e parar de dizer para aquela gente que eles não precisam de asfalto, assalto nem de salto alto. Precisam sim é viver em paz"! Excelente Eliana!

S. R. Tuppan⚡ disse...

~ * ~

Ótima narrativa! Boas reflexões. Belas paisagens! Contradições. Brasil

Reinaldo Ribeiro disse...

Eliana, as paisagens do passado entram sempre em conflito com o progresso. Não há como evitá-lo. Só os utópicos e os poetas têm a capacidade de não ver a fealdade dos tempos modernos. Essa vossa viagem continua a 'descobrir' um Brasil, absolutamente, real. Parabéns!

Reinaldo