I
A madrugada chegara
molhada nessa manhã,
água da noite de véspera
escura. Coruja e rã
o sítio tarde dormia.
Desabrochava-se a carne.
De sombra os galhos de sombra
reriam de luz mortiça
a paisagem da manhã.
Corria o rio sem força
corria com pouco afã,
as nuvens sujas pairavam
tal quando canta o cauã.
Fundo cortando insalubra
vinha o vento na maçã
do rosto já magoado
da menina temporã.
II
Ela descia o caminho
que dava da casa ao rio,
a terra estava encharcada
da noite de chuva e frio,
o mato de folhas moles
roçava-lhe fino o fio
do corpo de raros pêlos
ensopados de rocio.
Bocejo de fogo e forma
se lhe esboçava esse abio
duplo, da mulher menina,
planta agreste do arrepio.
Cheia de sono e preguiça
ia buscar água no rio.
III
Desde aí dessa manhã
nunca mais ela voltou,
seus irmãos desesperaram,
seu pai quase se matou,
fez a mãe nove novenas
mas de nada adiantou,
andava de boca em boca
que foi boto que a roubou,
as mulheres lamentavam
a mulher que se apagou,
luz de sol maduro e quente
que sequer nem se iniciou,
flor de carne e sentimento
quem sem viver se machucou;
correram todos pro rio
mas ninguém a encontrou,
rezaram nove novenas
mas de nada adiantou,
seus irmãos desesperaram,
seu pai quase se matou,
se sua mãe hoje existe
de chorar se definhou
os mistérios da menina
que em mistério se acabou.
FARIAS, Elson.
Romanceiro. Rio de Janeiro: José Olympio, 1990. p.92-94
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ELSON FARIAS é natural de Itacoatiara-AM, onde nasceu em 1936. Integrou
o Clube da Madrugada. Pertence à Academia Amazonense de Letras. Grande
expressão da literatura amazônica, é autor de vasta obra, entre as quais, Barro
verde (1961); Estações da várzea (1963); Romanceiro (1990); Ciclo das águas, (1966);
Dez canções primitivas (1968); Um romanceiro da criação (1969); Do amor e da
fábula (1970); etc.
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