quarta-feira, 28 de setembro de 2016

ESPANHA, 1937

W.H. Auden (1907-1973) 


Ontem todo o passado. A linguagem do tamanho
Expandindo-se à China por rotas de comércio; a difusão
                        Do ábaco e do cromlech;
Ontem o cálculo da sombra em regiões solares.

Onte a segurança avaliada pelas cartas,
O vaticínio da água; ontem a invenção
                        Da roda de carro e do relógio, a doma
De cavalos; ontem a azáfama do mundo navegante.

Ontem a abolição de fadas e gigantes;
A fortaleza, a águia imóvel a vigiar o vale,
                        A capela construída na floresta.
Ontem a talha de anjos e gárgulas medonhas;

O julgamento de heréticos entre colunas pétreas;
Ontem disputas teológicas em tascas
                        E a cura milagrosa junto à fonte;
O Sabá das Bruxas ontem. Hoje porém a luta.

Ontem a instalação de dínamos, turbinas;
A construção de ferrovias no deserto colonial;
                        Ontem a sempre clássica palestra
Sobre a origem da Humanidade. Hoje porém a luta.

Ontem a crença no valor absoluto da Hélade;
A cortina baixando sobre a morte do herói;
                        Ontem a prece no findar do dia,
E a adoração dos doidos. Hoje porém a luta.

E quando o poeta, alarmado, cicia entre espinhos
Ou onde canta a cascata solta, densa, ou aprumado
                        Sobre o penhasco ao pé da torre pensa:
“Oh visão minha, oh dai-me a estrela dos marujos.”

E o investigador perscruta com seus instrumentos
As imensas provícias, os bacilos varonis
                        Ou o enorme Júpiter consumado:
“Mas e as vidas de meus amigos. Eu pergunto que pergunto.”

E os pobres em suas casas sem lume abandonando as folhas
Do vespertino: “Nosso dia é o nosso dono. Oh vem mostrar-nos
                        História o operador, o
Organizador, o refrescante rio do Tempo.”

E as nações concertam cada grito, conjurando a vida
Que afeiçoa o ventre individual e ordena
                        O terror noturno privativo:
“Não viste a cidade-Estado das esponjas erguer

Outrora o vasto império militar do esqualo
E do tigre, fundar o cantão do tordo, destemido?
                        Intervém. Oh desce como pomba ou
Como furioso papá ou engenheiro benigno: mas desce.”

E a vida, se dá qualquer resposta, esta vem do coração
E dos olhos e pulmões, das lojas e das praças da cidade:
                        “Não, oh não sou eu o Propulsor,
Não hoje, tampouco para ti. Para ti sou o

“Capacho, o parceiro de bar, o fácil de iludir;
Eu sou o que fizeres; sou teu voto de ser
                        Bom, a tua história hilariante;
Sou tua voz de negócios; sou teu casamento.

“Qual a tua proposta? A Cidade Justa? Sim.
Concordo. Ou é um pacto de suicídio, a morte
                        Romântica? Muito bem, aceito, pois
Sou tua escolha, tua decisão: sim, sou Espanha.”

Muitos ouviram em penínsulas remotas,
Planícies sonolentas, ilhas de pescadores aberrantes,
                        No coração corrupto da cidade;
Ouviram e migraram, qual gaivotas ou sementes de uma flor.

Carrapichos, grudaram-se em longos trens expressos
A guinar por terras de injustiça, pela noite, pelo alpino túnel;
                        Flutuaram por sobre oceanos;
Atravessaram passos; vieram ofertar as suas vidas

Naquele árido quadrado, fragmento decepado à África
Escaldante e toscamente unido à inventiva Europa,
                        Naquele chapadão de rios cortado,
As formas ameaçadoras de nossa febre são precisas, vivas.

Amanhã o futuro talvez: a pesquisa da fadiga
Dos movimentos de empacotadores: a exploração gradual de
                        Todas as oitavas da radiação;
Amanhã a consciência alargada pela respiração e por dietas.

Amanhã o amor romântico descoberto uma outra vez;
A fotogravação de corvos; o divertimento todo à
                        Sombra magistral da Liberdade;
Amanhã a hora do diretor de préstito e do músico.

Amanhã, para os jovens, poetas explodindo feito bombas,
O passeio à beira do lago, o inverno de perfeita comunhão:
                        Amanhã a corrida de ciclistas
Pelos subúrbios nas tardes de verão; hoje porém a luta.

Hoje o inevitável aumento das chances de morrer
A cônscia aceitação da culpa no fato do assassínio;
                        Hoje o dispêndio de poderes
No enfadonho, efêmero panfleto e no comício chato.

Hoje as consolações provisórias; o cigarro partilhado;
As caras no celeiro à luz de vela e o concerto improvisado,
                        Os gracejos masculinos; hoje o
Abraço canhestro, insatisfeito, antes da dor.

As estrelas estão mortas; os animais não veem;
Estamos sós com o dia que nos coube, o tempo é curto e a
                        História em vias de derrota
Pode dizer um ai mas não nos pode absolver nem ajudar.

(tradução José Paulo Paes)
AUDEN, W. H. Poemas. Seleção João Moura Jr; tradução e introdução José Paulo Paes e João Moura Jr. São Paulo: Companhia das Letras, 1986. p.49-55

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