Túmulo de Elmiro Peres, no cemitério São João Batista, Tarauacá-AC. |
O
nome de Elmiro Peres, em Tarauacá, é envolvido por muitas histórias populares. Virou
“lenda”. Uma delas diz que o seu túmulo encontrava-se amarrado por grossas
correntes, pois, à noite, ouvia-se o rugir da fera querendo emergir das
profundezas. Mais que lenda, Elmiro entrou para o imaginário popular das
gerações seguintes como um dos mais cruéis seringalistas da região, por seus
pesados castigos que impunha a seus seringueiros. Seu nome, em princípios do
século XX, esteve envolvido em disputas de terras, ambições, traições, que
culminou no fatídico caso do assassinato do também seringalista Angelo Ferreira
da Silva.
Elmiro
Peres de Souza nasceu na cidade de Tamboril, estado do Ceará, em 1885. Chegou,
provavelmente, nos primeiros anos do século XX à região de Tarauacá. Começou como
seringueiro. Ascendeu. Junto com Auton Furtado e Antonio Carlos Viriato Saboia estabeleceu,
em 1918, a sociedade comercial Saboia, Furtado & C.ª, com sede no seringal
Universo, no rio Tarauacá. Em 28 de fevereiro de 1921, a Saboia, Furtado &
C.ª seria dissolvida, em comum acordo, com a saída de Antonio Carlos Viriato
Saboia. A partir daí, estabelecia-se a nova sociedade entre Elmiro e Furtado, surgindo
assim a Furtado & Peres, que se tornaria uma das maiores da região.
A
sede continuaria a ser o próspero seringal Universo, à margem esquerda do rio
Tarauacá, residência oficial dos sócios, de onde administravam os negócios e os
demais seringais. Universo contava com escola primária, a D. Pedro II, sob
responsabilidade da Prefeitura, (depois Coronel Antonio Frota, sob
responsabilidade do Território Federal), criação de gado e outros animais, além
de uma pequena “indústria” de tecelagem, que produzia redes e colchas de
algodão. Investimentos para driblar a crise da borracha.
Por
disputas de seringais, em 1.º de julho de 1909, em emboscada, seria assassinado
Angelo Ferreira da Silva, seringalista, explorador e “catequista de índios”,
num episódio que a imprensa local chamou de “A tragédia do Sanango”, referência
à colocação em que ocorrera o fato,
no Seringal Apuanã, no igarapé de mesmo nome, afluente do Tarauacá. Entre os
acusados estavam Auton Furtado, Ananias Lima e Elmiro Peres. Assim escreve o
antropólogo uruguaio Marcelo Piedrafita Iglesias:
“O
promotor de justiça Antonio José de Araújo, que viajou pelo rio Tarauacá após o
assassinato, informa que a emboscada foi tramada por Ananias Lima, Elmiro
Peres, Auton Furtado e outros, e que o “malogrado coronel” foi enterradoo no
seringal Apuanã. Tastevin atribui sua morte a rivais, aos quais alugara seu seringal,
versão endossada pelo historiador Castello Branco, que acrescenta que os
arrendatários teriam cometido o assassinato quando procurados “para regularizar
suas transações”, às vésperas de uma longa incursão que Ângelo pretendia
iniciar”. (2010, p.278)
A
incursão que Angelo iria iniciar era ir de Tarauacá ao Rio de Janeiro, por
terra, através das matas. A imprensa local, alguns anos depois, publicou o
seguinte texto, informando sobre o andamento judicial no caso dos acusados de
assassinarem Angelo:
A
TRAGÉDIA DO “SANANGO”
A
Justiça Pública em acção
O
SUMMARIO DE CULPA
O
crime de que a justiça publica, ora se occupa pela segunda vez, foi um dos que
mais impressionou a população inteira d‘este Departamento.
Escusado
seriamos entrar na minudencia dos factos que ocasionaram esta tragédia, pois
muito já escrevemos e o publico está mais que inteirado das circumstancias que
a revestiu.
Foi
iniciado no dia 28 de Fevereiro e terminou hontem, o novo processo de formação
de culpa dos indigitados auctores da tragédia occorrida no dia 1.º de Julho do
anno de 1909, no seringal “Apuanã” deste Termo.
Instaurando
novo processo, como o que terminou hontem, assim o fez o dr. Araujo Jorge, Juiz
Preparador, em cumprimento ao despacho do dr. Juiz de Direito da Comarca, que
anullou o primitivo summario, por incompetência do supplente de Juiz, Ulysses Castello Branco que a elle
presidiu.
Não
estando presente o adjuncto de promotor d’este Termo, que havia apresentado a
denuncia, foram, pelo dr. Araujo Jorge, nomeados successivamente, os advogados
drs. Hugo Ribeiro Carneiro e Correa Pinto, para exercerem as funções de
promotor ad-hoc, tendo sido recusada,
por ambos, essas nomeações, sob fundamentos que inhibiam de acceitarem aquelle
cargo.
Em
vista da recusa dos advogados residentes n’este Termo, aliás justificável,
resolveu o dr. Juiz Preparador, nomear o professor publico d’esta Villa, sr.
José Julio Nogueira, para acompanhar o processo como adjuncto de promotor ad-hoc, tendo sido essa nomeação
acceita.
Serviu
de escrivão ad-hoc, por estar ausente
o escrivão interino d’este Juizo, o sr. João Lopes Ypiranga dos Guaranys Filho,
que, nomeado por portaria do Juiz, prestou o compromisso da lei.
Sabemos
que foi formada a culpa, somente a 4 dos denunciados: Elmiro Peres, Auton
Furtado, Joaquim Onofre e Zeferino Gomes, por serem os únicos que se acham
actualmente n’este Termo, não se conhecendo, ao certo, o logar onde se deverão
encontrar os demais criminosos. O Juiz ordenou a expedição de precatórias para
o comparecimento dos restantes culpados à este Juizo, a fim de, em processo
separado, formar-se-lhes a culpa.
Inquiridas
as testemunhas na forma da lei e interrogados os réus que se apresentam, deu-se
por encerrado o summario subindo os autos, com vista, ao advogado dos
denunciados, dr. Bezerra Filho, para apresentar no praso da lei, a defeza dos
seus constituintes.
Passados
os 3 dias que a lei concede para os denunciados apresentarem sua defeza, irão
os autos ao sr. Promotor Publico, para a sua promoção.
Os
depoimentos tomados, foram bastante longos tendo se prolongado até à noite a
inquirição das testemunhas e os mais termos do processo.
Esperamos
que d’esta vez a justiça se fará punindo os auctores de tão clamorosa e
hedionda tragédia. (O Municipio, Ano III, N.75, 3 de março de 1912)
Alguns
meses depois, o juiz de Direito da Comarca, Araújo Jorge, pronunciou “os réos
Elmiro Peres e Joaquim Onofre de Oliveira, como incursos nas penas do art. 249
com as agravantes dos §§4.º, 7.º, 8.º e 13.º do artigo 39, tudo do Cod. Pen. E
despronunciou Auton Furtado e Zeferino Gomes Ferreira.”[1]. Somente
em 1914, Elmiro Peres iria a julgamento, um ano depois que havia sido criada a Comarca
do Departamento do Tarauacá. Sendo que, no dia 13 de maio de 1914, na reunião
do primeiro Júri da Comarca, Elmiro Peres era absolvido.
O
cearense Angelo Ferreira da Silva foi personagem conturbada da história no
início do século XX, como explorador, seringalista e como primeiro “catequista
de índios” na região do médio Tarauacá, tendo prestados serviços à prefeitura
do Alto Juruá e à Comissão de Obras Federais. Aí chegou por volta de 1900,
estabelecendo-se no seringal Cocamera, onde residiu até seu assassinato em
1909. Angelo vislumbrou o grande potencial gumifero da região, período em que a
borracha estava no seu auge. Abriu seringais e apossou-se de outros à bala, o
que atraiu sobre si a inimizade de seringalistas vizinhos. Cada vez mais
aumentava o patrimônio do “sertanista”. Seus seringais envolviam grandes latifúndios
no rio Tarauacá, Acuraua e nos igarapés Apuanã e Lupuna. O médio Tarauacá estava
quase inteiro sob seu domínio.
Detalhe do mapa do
padre Constant Tastevin mostrando os seringais do rio Tarauacá. Nele, Tastevin
assinalou o local da morte de Angelo Ferreira da Silva: Sanango + A. Ferreira.
(Cunha, 2009, p.241) |
Terras
habitadas por povos indígenas, ao contrário do que faziam outros seringalistas,
Angelo, estrategicamente, em vez de perseguir e exterminar os indígenas, passou
a protegê-los das “correrias” de outros seringalistas, e a reuni-los sob a sua
proteção. Por sua vez, utilizava-se da mão de obra indígena para trabalhar, sem
qualquer remuneração, em suas propriedades. O seringal Cocamera passou a ser um
dos mais prósperos e maiores da região. Angelo, em 1905, com os braços indígenas,
abriu um varadouro que ligava o Cocamera às cabeceiras do Gregório, e, em 1906,
abriu do Gregório a Cruzeiro do Sul. Escreveu Iglesias:
“O
convite seria reiterado por Thaumaturgo de Azevedo a Ângelo Ferreira da Silva
em maio de 1906. A abertura do varadouro de Cocameira a Cruzeiro do Sul, um
percurso de pouco mais de 190 quilômetros, foi concluída em começo do mês
seguinte, quando, após duas semanas de trabalho, à frente de uma turma de 63
homens, seus fregueses e empregados, Ângelo Ferreira chegou à sede do
Departamento, onde foi recepcionado pelo prefeito interino, Dr. José Pereira de
Britto Leite de Barredo.” (2010, p.175-176)
Esse
mesmo varadouro seria utilizado como linha de frente da estrada de rodagem chamada
“Leste-Oeste Brazileira”, que ligaria o Alto Juruá à Sena Madureira, no Alto
Purus. A proposta era levar o varadouro do Cocamera ao Purus. Angelo viu, nessa
proposta de abertura da estrada, ótima oportunidade de barganhar. Ajudaria a
fazer o traçado e abertura a “troco do auxílio de Andrada [então prefeito],
junto ao governo federal, no reconhecimento da posse de alguns lotes de terras
desconhecidas”. Com isso, sabe-se, distribuídas entre os seus diversos seringais,
Angelo chegava a ter quase 300 estradas de seringa produzindo a seu serviço,
numa época em que a borracha era ouro.
Por
sua vez, assim se referiu o padre espiritano Constant Tastevin, acerca de
Angelo Ferreira e sua “pacificação” indígena:
“No
entanto, os índios não aceitavam esta invasão, que pretendia ser pacífica e que
só visava à colheita de borracha. Em 1905, um audacioso aventureiro de nome
Angelo Ferreira conseguiu ser aceito como chefe pelos Yawa-nawa, pelos
Runu-nawa, pelos Isku-nawas etc., que ele agrupou sob o nome de Katukina. À sua
frente, ele tomou os rios Lupuna e Apuanan, onde abriu dois grandes seringais
que eram explorados pelo pessoal civilizado, em grande parte peruano. Os índios
serviam somente como soldados e como caçadores. Sob as suas ordens, eles
abriram um caminho entre Cocamera, sobre o Tarauacá, e Cruzeiro do Sul. Ele pacificou
as tribos próximas, Kachinawa e Arara, e convenceu o governador de Cruzeiro a
alargar a senda que ele havia aberto, e a transformá-la numa estrada de vinte
metros de largura que se prolongaria até Sena Madureira, sobre o Purus.
Cocamera, cabeça de linha, tornou-se uma verdadeira pequena cidade; a estrada
foi aberta em plena floresta virgem, e vinha-se, a cavalo, em quatro dias do
Cruzeiro até o Tarauacá. Teriam sido necessários rios de ouro para manter esta
estrada, que a natureza e os elementos insistiam em fazer desaparecer. Hoje só
resta dela a lembrança e uma floresta nova, absolutamente impenetrável. Em 1909
Angelo Ferreira foi assassinado por rivais aos quais ele havia alugado o seu
seringal do Apuanan. A sua personalidade é muito discutida: para alguns ele foi
um herói, para outros foi apenas um bandido.” (CUNHA, 2009, p.183-184)
Toda
essa tensão de intrigas e ambições, numa época em que a lei era o 44 papo amarelo, culminou com o fatídico
assassinato de Angelo Ferreira, cujos seringais foi adquirido, dos herdeiros, logo
em seguida pelos acusados de mandantes do crime. Ao final, ninguém foi preso. E
Elmiro Peres, em 1919, ainda chegou a ser, por curto período, subdelegado de
polícia do segundo Distrito do 1.º Termo (Feijó). Elmiro e Auton passaram a ser
proprietários de todos os seringais então pertencentes a Angelo Ferreira. O
seringal Universo, tornou-se o grande centro da região. Nas palavras de Floros
Orlando, em Nótulas de viagem em canoa:
“Pois, Cocamêra é um recanto do Peru: não falta a chicha, o côco, dansa-se
a marinheira a qualquer hora...”. E ainda dá a seguinte declaração acerca de Elmiro: “O Elmiro fazia na segunda
parte da viagem, o papel de guia. É adorável o Elmiro. Do seu bucéphalo irrequieto
e espantado e pertinaz, fazia belíssimas prelecções sobre a utilidade de
qualquer madeira, cipó, fructo ou flor que se nos antolhasse no caminho. Tudo ele
conhece. É o puro seringueiro.”[2].
A
sociedade entre Elmiro e Auton só se dissolveria em 1925, quando da morte de
Elmiro Peres, ocorrida a 6 de janeiro de 1925, no seringal Guadalupe, no rio Tarauacá.
Eis a notícia que o jornal local A Reforma, publicou:
NECROLOGIA
Capitão
Elmiro Peres
Falleceu
no dia seis deste mez, em viagem para esta cidade, no porto de Guadalupe, neste
rio Tarauacá, o nosso velho amigo capitão Elmiro Peres, conceituado sócio da
firma Furtado & Peres, que girava neste município há annos com séde no
seringal “Universo”.
No
vigor de uma existência útil e cheia de energias para o trabalho, foi
arrebatado pela morte um cidadão honrado e luctador que por estas plagas
dispendeu o melhor de sua vida e, a esta terra entregou os seus restos mortaes,
bem longe de seu berço e daquelles que lhe foram imagens dos últimos
pensamentos.
O
capitão Elmiro Peres, era natural de Tamboril, no Estado do Ceará, solteiro e
contava pouca mais de quarenta annos de idade.
O
seu enterro realizou-se às 13 horas no dia 7 no cemitério desta cidade, tendo
feito a encommendação litúrgica do cadáver o padre José Fritsch, começada desde
o grupo escolar “João Ribeiro” até a borda do tumulo.
Grande
foi o cortejo que acompanhou o luxuoso feretro do extincto e digno cearense a
eterna morada. Podemos tomar nota das seguintes pessoas, Dr. Edgard Carlos do
Reis, Juiz de Direito da Comarca, Capitão Hipolyto de Albuquerque e Silva,
Intendente Municipal, Coronel João Jeronymo Magalhães, Tenente Gualter Marques
Baptista, Major Luiz Macario Pereira do Lago, Capitão José Moreira de Rezende,
Coronel José Florêncio da Cunha, Major Elysio Frota, Capitão Anastacio
Rodrigues de Farias, José Maria Carvalho, Nagip Said, Jaquim Saturnino de
Araújo, Bento Marques de Albuquerque, José Amin, José Hygino de Sousa, Felix
Antonio da Cruz, José Soares Judidath, Coronel Antonio Joaquim de Sousa, José
Bernardo Leite, Alcebiades Leitão, Amin Kaade, Francisco do Valle Mello,
Capitão Irineu Catão, Ayrif Salmen, Adelino Araújo Ferreira Gondim, Manoel de
Fontes Rangel, Calil Alaydim, Aureliano Mourão, Emilio Gurgel do Amaral, Salum
Saad, José da Cruz de Sá, Manoel Domingues, Fellipe Nery, Antonio Theophilo
Lessa, Camillo Derzi, Mamud José Alele, Manoel de Oliveira Martins, João
Cassiano da Costa Domingos Lima e outros cujos nomes ignoramos.
Sentimentalismos
a toda família do finado Peres, principalmente a sua veneranda genitora, irmãos
e ao seu grande amigo, parente e sócio coronel Auton Furtado. (A REFORMA, Ano
III, N.83, 11 de janeiro de 1925)
Referências
CUNHA, Manuela
Carneiro da. Tastevin, Parrisier: Fontes sobre índios e seringueiros do Alto
Juruá. Rio de Janeiro: Museu do Índio, 2009.
FARIAS, Anastácio
Rodrigues de. Diversos dados sobre o município de Seabra 1905-1943. Rio Branco:
IHGA, 1993.
IGLESIAS, Marcelo Piedrafita. Os Kaxinawá de Felizardo: correrias,
trabalho e civilização no Alto Juruá. Brasília: Paralelo 15, 2010.
Um comentário:
Excelente artigo! Tristes fatos que demonstram como foi a formação do território do Acre.
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