sexta-feira, 22 de junho de 2018

A MONTANHA MÁGICA

Thomas Mann (1875-1955)

No entanto, não chegou a acordar, no sentido próprio da palavra. Apenas piscou os olhos, aliviado por se ver livre dessas megeras atrozes. Mas não tinha certeza e também pouco lhe importava saber se se achava estatelado junto a uma coluna de templo ou a um galpão. Em certo sentido prosseguia sonhando, se não em imagens, ao menos em pensamentos, porém de forma não menos atrevida e curiosa.
“Logo vi que isso era um sonho!”, devaneou de si para si. “Um sonho encantador e pavoroso. No fundo o percebia desde o começo. Tudo foi concepção minha, o parque de árvores frondosas e a chuva deliciosa e todo o resto, as imagens lindas e as monstruosas. Quase o sabia de antemão. Mas como é possível saber uma coisa dessas e concebê-la para si mesmo, tornando-se a um tempo feliz e perplexo? Donde tirei aquele belo golfo semeado de ilhas e depois o recinto do templo, ao qual me guiaram os olhos do simpático rapaz que se mantinha isolado? Sou tentado a dizer que não extraímos os sonhos unicamente da nossa própria alma. sonhamos anônima e coletivamente, embora de forma individual. A grande alma, da qual tu não és mais do que uma partícula, talvez sonhe às vezes através de ti, à tua maneira. Sonha com coisas que sempre lhe enchem os sonhos secretos: sua juventude, sua esperança, sua felicidade e sua paz, e também a sua ceia sangrenta. Aqui me acho ao pé da minha coluna e ainda sinto em mim os vestígios reais do meu sonho, o horror frio que experimentei ante a ceia sangrenta, e também a alegria íntima originada pelas cenas anteriores, quando vi a felicidade e os costumes piedosos da humanidade branca. Cabe-me – afirmo eu –, tenho o genuíno direito de me deitar aqui e de me entregar a esse tipo de sonhos. Fiquei sabendo muita coisa no convívio com a gente daqui, sobre a deserção e a razão. Perdi-me com Naphta e Settembrini numa montanha perigosíssima. Sei tudo a respeito do homem; conheci a sua carne; devolvi o lápis de Pribislav Hippe à enferma Clávdia. Mas quem conhece o corpo e a vida conhece a morte. isso, entretanto, não é tudo, mas apenas o começo, pedagogicamente falando. É preciso acrescentar a outra metade, o oposto. Pois todo o interesse pela morte e pela doença não passa de uma forma de exprimir aquele que se tem pela vida, como demonstra a humanística Faculdade de Medicina, que sempre se dirige à vida e à sua enfermidade num latim muito cortês e não é senão um matiz desse grande e urgentíssimo assunto cujo nome pronuncio com a maior simpatia: é o filho enfermiço da vida, é o homem, com seu estado e sua posição. Não o desconheço; aprendi muito aqui em cima; desde a planície deixei-me arrastar a tamanhas alturas que quase perdi o fôlego. Mas agora, do pé da minha coluna, abre-se uma vista nada má... Sonhei com a posição do homem e sua comunidade polida, sisuda e respeitosa, a cujas costas se passava, no interior do templo, a medonha ceia sangrenta. Será que os filhos do Sol se tratavam uns aos outros com tanta cortesia e amabilidade, precisamente na recordação silenciosa daquela atrocidade? Nesse caso tirariam uma conclusão muito sutil e elegante. Quero, com toda a minha alma, aderir a eles e não a Naphta, nem tampouco a Settembrini. Ambos são charlatães. Um é devasso e malicioso, ao passo que o outro não deixa de tocar a corneta da razão e imagina ser capaz de desenlouquecer os próprios doidos, o que me parece absurdo. É o espírito filisteu, é mera ética, é irreligiosidade, disso tenho certeza. Mas também não desejo tomar o partido do pequeno Naphta, com a sua religião que é apenas um guazzabuglio de Deus e do Diabo, do bem e do mal, que só serve para fazer o indivíduo atirar-se de cabeça, a fim de mergulhar misticamente no todo. Esses dois pedagogos! Suas próprias divergências e oposições não passam de um guazzabuglio e de um confuso fragor de batalha, que não pode aturdir a quem tiver o cérebro mais ou menos livre e o coração piedoso. A questão da aristocracia! A distinção! Vida ou morte, enfermidade ou saúde, alma e natureza – há oposição entre elas? Eu pergunto se constituem problema. Não! Não são problemas, e tampouco o é o tal problema da sua distinção. A deserção da morte está encerrada na vida; sem ela não haveria vida, e a posição do Homo Dei acha-se no meio, entre a deserção e a razão, entre a coletividade mística e o individualismo inconsciente. É o que percebo da minha coluna. Nessa sua posição, cumpre-lhe viver de um modo fino e galante, e manter relações de amistoso respeito consigo próprio; pois só ele é distinto, e não as oposições. O homem é o dono das oposições que existem por seu intermédio, e por conseguinte ele é mais nobre do que elas. Mais nobre do que elas, mais nobre do que a morte, demasiado nobre para ela, e isso constitui a liberdade de seu cérebro. Mais nobre do que a vida, demasiado nobre para ela, e isso constitui a piedade do seu coração. Eis que acabo de fazer um poema, um devaneio poético sobre o homem. Quero lembrar-me dele. Quero ser bom. Não quero conceder à morte nenhum poder sobre os meus pensamentos! Nisso é que consiste a bondade e a filantropia, e em nada mais. A morte é uma grande potência. As pessoas tiram o chapéu e avançam a passo cadenciado, nas pontas dos pés, quando ela está perto. Usa a cerimoniosa golilha do passado, e todos se vestem gravemente de preto em sua honra. Diante dela, a razão parece tola, porque é apenas virtude, ao passo que a morte é liberdade, deserção, amorfia e volúpia. A volúpia – clama o meu sonho –, não o amor! A morte e o amor, não, isso não rima; eles dão um poema insípido e falso! O amor enfrenta a morte; só ele, e não a razão, é mais forte do que ela. Só ele, e não a razão, inspira pensamentos bondosos. Também a forma não consta senão de amor e de bondade, a forma e a civilização de uma coletividade sensata e amável e de um belo Estado humano, na recordação silenciosa da ceia sangrenta. Ah, sim, isso se chama sonhar com clareza e “reinar” bem! Quero lembrar-me disso! Quero conservar meu coração fiel à morte e, contudo, recordar-me claramente de que a fidelidade à morte e ao passado é apenas malvadez, tenebrosa volúpia e hostilidade aos homens, quando determina os nossos pensamentos e atos de governo. Em consideração à bondade e ao amor, o homem não deve conceder à morte nenhum poder sobre os seus pensamentos. E com isso vou acordar... Pois segui o meu sonho até o fim. Alcancei o meu objetivo. Há muito que eu procurava essa ideia, no lugar onde me apareceu Hippe, no meu compartimento de sacada, e em toda parte. A minha busca me levou às montanhas cobertas de neve. Agora a possuo. Meu sonho revelou-a para mim com tanta nitidez que sempre a guardarei na memória. Sim, ela me encanta e me dá calor. Meu coração bate com força e sabe por quê. Não pulsa somente por razões físicas, assim como as unhas de um cadáver continuam crescendo; pulsa de um modo humano e certo, devido ao espírito feliz. É como uma poção, esta ideia do meu sonho, melhor do que vinho do Porto ou cerveja inglesa. Circula pelas minhas veias como o amor e a vida, e me induz a arrancar-me do sono e dos devaneios, que, como não ignoro, põem em gravíssimo perigo a minha jovem vida... Levante-, levante-te! Abre os olhos! Essas pernas aí na neve são os teus próprios membros! Domina-te e coloca-te de pé! Olha só, faz bom tempo!”

MANN, Thomas. A montanha mágica. Tradução Herbert Caro. São Paulo: Círculo do Livro, 1986. p.596-598
 
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SOBRE A MONTANHA MÁGICA, DE THOMAS MANN
Antonio Cícero

Li A montanha mágica pela primeira vez quando adolescente. A imponência do volume sugeria, de fato, uma montanha a ser escalada; quanto à mágica, senti-a desde as primeiras páginas.

Na verdade, Thomas Mann extraiu o título desse romance do trecho de O nascimento da tragédia em que Nietzsche diz: “Agora a montanha mágica do Olimpo como que se nos abre e mostra as suas raízes. O grego conheceu e sentiu os pavores e horrores da existência: para poder não mais que viver, precisou conceber a resplandecente criatura onírica dos olímpicos.” Mas os tempos modernos são outros. Ironicamente, na montanha mágica de Thomas Mann, situada na Suíça, não se encontram seres sobre-humanos, mas humanos enfermos: não a morada dos deuses, mas um sanatório para tuberculosos, do qual o escritor alemão faz um microcosmo em que encena, de modo magistralmente depurado, tanto o enfrentamento quanto o entrelaçamento das diferentes ideias que moviam o espírito europeu nos anos imediatamente anteriores à eclosão da primeira guerra mundial.

Entretanto, A montanha mágica não consiste num tratado de filosofia ou de história das ideias, mas num romance. Graças à arte do autor, seus personagens ficam-nos na memória como seres de carne e osso. Alguns são inesquecíveis: a russa Mme. Chauchat, cujos “olhos quirguizes” lembram ao personagem central – o “jovem singelo, ainda que simpático”, Hans Castorp – certo colega do ginásio, e contribuem para lhe provocar uma verdadeira obsessão erótica; o holandês Mynheer Peeperkorn (baseado no escritor – Prêmio Nobel de Literatura – Gerhart Hauptmann), que, “robusto e delicado”, domina, pela sua presença monumental e pelos seus gestos teatrais, os ambientes em que se encontra, apesar (ou também por causa?) do caráter inconcluso de quase todas as suas afirmações; e sobretudo, pelo menos para mim, o humanista italiano Settembrini e o jesuíta Naphta (que tudo indica ter sido baseado no filósofo Georg Lukács), que se digladiam intelectualmente em torno do espírito de Hans Castorp – e do leitor.

Settembrini é o que Thomas Mann chama, não sem uma pitada de desdém, de Zivilizationsliterat, “literato da civilização”, isto é, um intelectual, herdeiro espiritual do humanismo e da Ilustração, nos moldes tradicionais da Europa Ocidental. Sua linguagem é “plástica”, como ele mesmo define, e tende a resvalar para a retórica. Interessado na vida mundana, sua figura é, no entanto, um pouco démodé e ridícula, tanto que, logo que o vê, Castorp o toma por um tocador de realejo. Naphta deveria representar, ao contrário, a cultura genuinamente alemã e romântica, em oposição àquilo que inúmeros pensadores alemães, tais como Spengler, tomavam como o mito superficial da civilização universal; no entanto, com notável ironia e profundidade, Thomas Mann o caracteriza como judeu da Europa Central, jesuíta e apologista dos valores da Idade Média. Chocantemente feio, ele é, no entanto, ao contrário de Settembrini, impecavelmente elegante e refinado.

“A malícia, senhor”, diz Settembrini no seu primeiro encontro com Hans Castorp, “é o espírito da crítica, e a crítica representa a origem do progresso e do esclarecimento”. Ao tratar cada um desses dois personagens com irreverência, logo distância crítica, equivalente, Thomas Mann assume plenamente o direito de – nas palavras de Strindberg que ele gostava de citar – “jogar com pensamentos e experimentar com pontos de vista, mas sem se atar a coisa alguma, pois a liberdade é o ar vital do poeta”. A verdade é que A montanha mágica exemplifica perfeitamente a tese de Schlegel de que “os romances são os diálogos socráticos de nosso tempo. Nessa forma liberal a sabedoria de vida refugiou-se da sabedoria escolar”.

De todo modo, talvez a característica mais assombrosa das discussões entre Settembrini e Naphta, para quem os lê no princípio do século XXI, é a sua inteira atualidade. De um lado, o religioso para quem é mister “espalhar o terror para a redenção do mundo e para a conquista do objetivo da redenção, que é a relação filial com Deus, sem a intervenção do Estado e das classes”; de outro, o secularista para quem é imperativo salvar e expandir as conquistas do Renascimento e do Século das Luzes, que, segundo ele, são “personalidade, direitos do homem, liberdade”. Essas posições se confrontam e desenvolvem em diálogos memoráveis, e um calafrio nos percorre quando nos damos conta do caráter profético das palavras com que Thomas Mann – bem antes da ocorrência de Auschwitz ou do Arquipélago Gulag, ou dos aviões e homens-bomba do nosso tempo – faz Naphta defender, por exemplo, a tese de que “o segredo e a existência da nossa era não são a libertação e o desenvolvimento do eu. O que ela necessita, o que deseja, o que criará é – o terror”.

Mas A montanha mágica é atual também em outro sentido. No passado, não faltou quem qualificasse a estrutura dos seus romances de insuficientemente experimental, em comparação com as dos romances de James Joyce ou Robert Musil, por exemplo. Trata-se de um equívoco. Cada obra de arte é sui generis, e deve ser respeitada e julgada segundo os critérios que ela mesma impõe. Em particular, são inaceitáveis os diagnósticos e as receitas baseados em tendências literárias à la page. A arte de Thomas Mann não fica em nada a dever à de Joyce ou Musil. Além disso, não se poderia compreender o caráter experimental de uma obra partir de semelhantes comparações. Convém contemplar a probabilidade de que o autor leve a sério a máxima que repete diversas vezes, ao longo do romance: placet experiri, isto é, “convém experimentar”. Seria cegueira taxar de conservador um estilo que admite, por exemplo, amplas passagens ensaísticas; que relativiza perspectivisticamente todas as posições espirituais, inclusive as do narrador; que emprega técnicas de composição extraídas da arte musical, como o leitmotiv; que utiliza magistralmente a citação e a alusão; etc.

De todo modo, devo dizer que A montanha mágica foi para mim um Bildungsroman, isto é, um romance de formação, não apenas no sentido convencional e tradicionalmente reconhecido de que narra o aprendizado intelectual e emocional do já citado Hans Castorp, mas também de um modo muito pessoal, pois contribuiu decisivamente para a minha própria formação intelectual e emocional. Data, com efeito, da época da minha primeira leitura desse livro a decisão de dedicar os meus estudos prioritariamente à filosofia.

É por isso que me foi irresistível o convite para escrever esta apresentação. Aceitei-o, portanto, e reli o livro. Muita paixão literária da juventude perece, quando submetida a um olhar maduro. No caso de A montanha mágica, porém, creio que a experiência e os estudos me tenham armado para captar ainda melhor as inúmeras sugestões, alusões e sutilezas que, tendo escapado ao adolescente sem lhe fazerem falta, aumentam o deleite do adulto: o fato é que, para mim, ela se provou uma dessas obras-primas que não apenas resistem ao tempo, mas com ele crescem.


CÍCERO, Antonio. A poesia e a crítica: ensaios de Antonio Cícero. São Paulo: Companhia das Letras, 2017. p.224-228

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