Thomas Mann (1875-1955)
No entanto, não
chegou a acordar, no sentido próprio da palavra. Apenas piscou os olhos,
aliviado por se ver livre dessas megeras atrozes. Mas não tinha certeza e
também pouco lhe importava saber se se achava estatelado junto a uma coluna de
templo ou a um galpão. Em certo sentido prosseguia sonhando, se não em imagens,
ao menos em pensamentos, porém de forma não menos atrevida e curiosa.
“Logo vi que isso
era um sonho!”, devaneou de si para si. “Um sonho encantador e pavoroso. No
fundo o percebia desde o começo. Tudo foi concepção minha, o parque de árvores
frondosas e a chuva deliciosa e todo o resto, as imagens lindas e as
monstruosas. Quase o sabia de antemão. Mas como é possível saber uma coisa
dessas e concebê-la para si mesmo, tornando-se a um tempo feliz e perplexo?
Donde tirei aquele belo golfo semeado de ilhas e depois o recinto do templo, ao
qual me guiaram os olhos do simpático rapaz que se mantinha isolado? Sou
tentado a dizer que não extraímos os sonhos unicamente da nossa própria alma.
sonhamos anônima e coletivamente, embora de forma individual. A grande alma, da
qual tu não és mais do que uma partícula, talvez sonhe às vezes através de ti,
à tua maneira. Sonha com coisas que sempre lhe enchem os sonhos secretos: sua
juventude, sua esperança, sua felicidade e sua paz, e também a sua ceia
sangrenta. Aqui me acho ao pé da minha coluna e ainda sinto em mim os vestígios
reais do meu sonho, o horror frio que experimentei ante a ceia sangrenta, e
também a alegria íntima originada pelas cenas anteriores, quando vi a
felicidade e os costumes piedosos da humanidade branca. Cabe-me – afirmo eu –,
tenho o genuíno direito de me deitar aqui e de me entregar a esse tipo de
sonhos. Fiquei sabendo muita coisa no convívio com a gente daqui, sobre a
deserção e a razão. Perdi-me com Naphta e Settembrini numa montanha
perigosíssima. Sei tudo a respeito do homem; conheci a sua carne; devolvi o
lápis de Pribislav Hippe à enferma Clávdia. Mas quem conhece o corpo e a vida
conhece a morte. isso, entretanto, não é tudo, mas apenas o começo,
pedagogicamente falando. É preciso acrescentar a outra metade, o oposto. Pois
todo o interesse pela morte e pela doença não passa de uma forma de exprimir
aquele que se tem pela vida, como demonstra a humanística Faculdade de
Medicina, que sempre se dirige à vida e à sua enfermidade num latim muito
cortês e não é senão um matiz desse grande e urgentíssimo assunto cujo nome
pronuncio com a maior simpatia: é o filho enfermiço da vida, é o homem, com seu
estado e sua posição. Não o desconheço; aprendi muito aqui em cima; desde a
planície deixei-me arrastar a tamanhas alturas que quase perdi o fôlego. Mas
agora, do pé da minha coluna, abre-se uma vista nada má... Sonhei com a posição
do homem e sua comunidade polida, sisuda e respeitosa, a cujas costas se
passava, no interior do templo, a medonha ceia sangrenta. Será que os filhos do
Sol se tratavam uns aos outros com tanta cortesia e amabilidade, precisamente
na recordação silenciosa daquela atrocidade? Nesse caso tirariam uma conclusão
muito sutil e elegante. Quero, com toda a minha alma, aderir a eles e não a
Naphta, nem tampouco a Settembrini. Ambos são charlatães. Um é devasso e
malicioso, ao passo que o outro não deixa de tocar a corneta da razão e imagina
ser capaz de desenlouquecer os próprios doidos, o que me parece absurdo. É o
espírito filisteu, é mera ética, é irreligiosidade, disso tenho certeza. Mas também
não desejo tomar o partido do pequeno Naphta, com a sua religião que é apenas
um guazzabuglio de Deus e do Diabo,
do bem e do mal, que só serve para fazer o indivíduo atirar-se de cabeça, a fim
de mergulhar misticamente no todo. Esses dois pedagogos! Suas próprias
divergências e oposições não passam de um guazzabuglio
e de um confuso fragor de batalha, que não pode aturdir a quem tiver o
cérebro mais ou menos livre e o coração piedoso. A questão da aristocracia! A
distinção! Vida ou morte, enfermidade ou saúde, alma e natureza – há oposição
entre elas? Eu pergunto se constituem problema. Não! Não são problemas, e
tampouco o é o tal problema da sua distinção. A deserção da morte está
encerrada na vida; sem ela não haveria vida, e a posição do Homo Dei acha-se no meio, entre a
deserção e a razão, entre a coletividade mística e o individualismo inconsciente.
É o que percebo da minha coluna. Nessa sua posição, cumpre-lhe viver de um modo
fino e galante, e manter relações de amistoso respeito consigo próprio; pois só
ele é distinto, e não as oposições. O homem é o dono das oposições que existem
por seu intermédio, e por conseguinte ele é mais nobre do que elas. Mais nobre
do que elas, mais nobre do que a morte, demasiado nobre para ela, e isso
constitui a liberdade de seu cérebro. Mais nobre do que a vida, demasiado nobre
para ela, e isso constitui a piedade do seu coração. Eis que acabo de fazer um
poema, um devaneio poético sobre o homem. Quero lembrar-me dele. Quero ser bom.
Não quero conceder à morte nenhum poder sobre os meus pensamentos! Nisso é que
consiste a bondade e a filantropia, e em nada mais. A morte é uma grande
potência. As pessoas tiram o chapéu e avançam a passo cadenciado, nas pontas
dos pés, quando ela está perto. Usa a cerimoniosa golilha do passado, e todos
se vestem gravemente de preto em sua honra. Diante dela, a razão parece tola, porque
é apenas virtude, ao passo que a morte é liberdade, deserção, amorfia e
volúpia. A volúpia – clama o meu sonho –, não o amor! A morte e o amor, não,
isso não rima; eles dão um poema insípido e falso! O amor enfrenta a morte; só
ele, e não a razão, é mais forte do que ela. Só ele, e não a razão, inspira
pensamentos bondosos. Também a forma não consta senão de amor e de bondade, a
forma e a civilização de uma coletividade sensata e amável e de um belo Estado
humano, na recordação silenciosa da ceia sangrenta. Ah, sim, isso se chama
sonhar com clareza e “reinar” bem! Quero lembrar-me disso! Quero conservar meu
coração fiel à morte e, contudo, recordar-me claramente de que a fidelidade à
morte e ao passado é apenas malvadez, tenebrosa volúpia e hostilidade aos
homens, quando determina os nossos pensamentos e atos de governo. Em consideração à bondade e ao amor, o homem
não deve conceder à morte nenhum poder sobre os seus pensamentos. E com
isso vou acordar... Pois segui o meu sonho até o fim. Alcancei o meu objetivo.
Há muito que eu procurava essa ideia, no lugar onde me apareceu Hippe, no meu
compartimento de sacada, e em toda parte. A minha busca me levou às montanhas
cobertas de neve. Agora a possuo. Meu sonho revelou-a para mim com tanta
nitidez que sempre a guardarei na memória. Sim, ela me encanta e me dá calor.
Meu coração bate com força e sabe por quê. Não pulsa somente por razões
físicas, assim como as unhas de um cadáver continuam crescendo; pulsa de um
modo humano e certo, devido ao espírito feliz. É como uma poção, esta ideia do
meu sonho, melhor do que vinho do Porto ou cerveja inglesa. Circula pelas
minhas veias como o amor e a vida, e me induz a arrancar-me do sono e dos
devaneios, que, como não ignoro, põem em gravíssimo perigo a minha jovem vida...
Levante-, levante-te! Abre os olhos! Essas pernas aí na neve são os teus
próprios membros! Domina-te e coloca-te de pé! Olha só, faz bom tempo!”
MANN, Thomas. A
montanha mágica. Tradução Herbert Caro. São Paulo: Círculo do Livro, 1986.
p.596-598
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SOBRE A MONTANHA MÁGICA, DE THOMAS MANN
Antonio Cícero
Li A montanha mágica pela primeira vez
quando adolescente. A imponência do volume sugeria, de fato, uma montanha a ser
escalada; quanto à mágica, senti-a desde as primeiras páginas.
Na verdade, Thomas
Mann extraiu o título desse romance do trecho de O nascimento da tragédia em que Nietzsche diz: “Agora a montanha
mágica do Olimpo como que se nos abre e mostra as suas raízes. O grego conheceu
e sentiu os pavores e horrores da existência: para poder não mais que viver,
precisou conceber a resplandecente criatura onírica dos olímpicos.” Mas os
tempos modernos são outros. Ironicamente, na montanha mágica de Thomas Mann,
situada na Suíça, não se encontram seres sobre-humanos, mas humanos enfermos:
não a morada dos deuses, mas um sanatório para tuberculosos, do qual o escritor
alemão faz um microcosmo em que encena, de modo magistralmente depurado, tanto
o enfrentamento quanto o entrelaçamento das diferentes ideias que moviam o
espírito europeu nos anos imediatamente anteriores à eclosão da primeira guerra
mundial.
Entretanto, A montanha mágica não consiste num
tratado de filosofia ou de história das ideias, mas num romance. Graças à arte
do autor, seus personagens ficam-nos na memória como seres de carne e osso.
Alguns são inesquecíveis: a russa Mme. Chauchat, cujos “olhos quirguizes”
lembram ao personagem central – o “jovem singelo, ainda que simpático”, Hans
Castorp – certo colega do ginásio, e contribuem para lhe provocar uma
verdadeira obsessão erótica; o holandês Mynheer Peeperkorn (baseado no escritor
– Prêmio Nobel de Literatura – Gerhart Hauptmann), que, “robusto e delicado”,
domina, pela sua presença monumental e pelos seus gestos teatrais, os ambientes
em que se encontra, apesar (ou também por causa?) do caráter inconcluso de
quase todas as suas afirmações; e sobretudo, pelo menos para mim, o humanista
italiano Settembrini e o jesuíta Naphta (que tudo indica ter sido baseado no
filósofo Georg Lukács), que se digladiam intelectualmente em torno do espírito
de Hans Castorp – e do leitor.
Settembrini é o que
Thomas Mann chama, não sem uma pitada de desdém, de Zivilizationsliterat, “literato da civilização”, isto é, um
intelectual, herdeiro espiritual do humanismo e da Ilustração, nos moldes
tradicionais da Europa Ocidental. Sua linguagem é “plástica”, como ele mesmo
define, e tende a resvalar para a retórica. Interessado na vida mundana, sua
figura é, no entanto, um pouco démodé
e ridícula, tanto que, logo que o vê, Castorp o toma por um tocador de realejo.
Naphta deveria representar, ao contrário, a cultura genuinamente alemã e
romântica, em oposição àquilo que inúmeros pensadores alemães, tais como
Spengler, tomavam como o mito superficial da civilização universal; no entanto,
com notável ironia e profundidade, Thomas Mann o caracteriza como judeu da
Europa Central, jesuíta e apologista dos valores da Idade Média. Chocantemente
feio, ele é, no entanto, ao contrário de Settembrini, impecavelmente elegante e
refinado.
“A malícia,
senhor”, diz Settembrini no seu primeiro encontro com Hans Castorp, “é o
espírito da crítica, e a crítica representa a origem do progresso e do
esclarecimento”. Ao tratar cada um desses dois personagens com irreverência,
logo distância crítica, equivalente, Thomas Mann assume plenamente o direito de
– nas palavras de Strindberg que ele gostava de citar – “jogar com pensamentos
e experimentar com pontos de vista, mas sem se atar a coisa alguma, pois a
liberdade é o ar vital do poeta”. A verdade é que A montanha mágica exemplifica perfeitamente a tese de Schlegel de
que “os romances são os diálogos socráticos de nosso tempo. Nessa forma liberal
a sabedoria de vida refugiou-se da sabedoria escolar”.
De todo modo,
talvez a característica mais assombrosa das discussões entre Settembrini e
Naphta, para quem os lê no princípio do século XXI, é a sua inteira atualidade.
De um lado, o religioso para quem é mister “espalhar o terror para a redenção
do mundo e para a conquista do objetivo da redenção, que é a relação filial com
Deus, sem a intervenção do Estado e das classes”; de outro, o secularista para
quem é imperativo salvar e expandir as conquistas do Renascimento e do Século
das Luzes, que, segundo ele, são “personalidade, direitos do homem, liberdade”.
Essas posições se confrontam e desenvolvem em diálogos memoráveis, e um calafrio
nos percorre quando nos damos conta do caráter profético das palavras com que
Thomas Mann – bem antes da ocorrência de Auschwitz ou do Arquipélago Gulag, ou
dos aviões e homens-bomba do nosso tempo – faz Naphta defender, por exemplo, a
tese de que “o segredo e a existência da nossa era não são a libertação e o
desenvolvimento do eu. O que ela necessita, o que deseja, o que criará é – o
terror”.
Mas A montanha mágica é atual também em
outro sentido. No passado, não faltou quem qualificasse a estrutura dos seus
romances de insuficientemente experimental, em comparação com as dos romances
de James Joyce ou Robert Musil, por exemplo. Trata-se de um equívoco. Cada obra
de arte é sui generis, e deve ser respeitada e julgada segundo os critérios que
ela mesma impõe. Em particular, são inaceitáveis os diagnósticos e as receitas
baseados em tendências literárias à la
page. A arte de Thomas Mann não fica em nada a dever à de Joyce ou Musil.
Além disso, não se poderia compreender o caráter experimental de uma obra
partir de semelhantes comparações. Convém contemplar a probabilidade de que o
autor leve a sério a máxima que repete diversas vezes, ao longo do romance: placet experiri, isto é, “convém
experimentar”. Seria cegueira taxar de conservador um estilo que admite, por
exemplo, amplas passagens ensaísticas; que relativiza perspectivisticamente
todas as posições espirituais, inclusive as do narrador; que emprega técnicas
de composição extraídas da arte musical, como o leitmotiv; que utiliza
magistralmente a citação e a alusão; etc.
De todo modo, devo
dizer que A montanha mágica foi para
mim um Bildungsroman, isto é, um
romance de formação, não apenas no sentido convencional e tradicionalmente
reconhecido de que narra o aprendizado intelectual e emocional do já citado
Hans Castorp, mas também de um modo muito pessoal, pois contribuiu
decisivamente para a minha própria formação intelectual e emocional. Data, com
efeito, da época da minha primeira leitura desse livro a decisão de dedicar os
meus estudos prioritariamente à filosofia.
É por isso que me
foi irresistível o convite para escrever esta apresentação. Aceitei-o,
portanto, e reli o livro. Muita paixão literária da juventude perece, quando
submetida a um olhar maduro. No caso de A
montanha mágica, porém, creio que a experiência e os estudos me tenham
armado para captar ainda melhor as inúmeras sugestões, alusões e sutilezas que,
tendo escapado ao adolescente sem lhe fazerem falta, aumentam o deleite do
adulto: o fato é que, para mim, ela se provou uma dessas obras-primas que não
apenas resistem ao tempo, mas com ele crescem.
CÍCERO, Antonio. A poesia
e a crítica: ensaios de Antonio Cícero. São Paulo: Companhia das Letras, 2017. p.224-228
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