segunda-feira, 18 de junho de 2018

VARANDAS DA EVA

Milton Hatoum

Foto: tatui.sp.gov.br
Varandas da Eva: o nome do lugar.

Não era longe do porto, mas naquela época a noção de distância era outra. O tempo era mais longo, demorado, ninguém falava em desperdiçar horas ou minutos. Desprezávamos a velhice, ou a ideia de envelhecer; vivíamos perdidos no tempo, as tardes nos sufocavam, lentas: tardes paradas no mormaço. Já conhecíamos a noite: festas no Fast Clube e no antigo Barés, bailes a bordo dos navios da Booth Line, serenatas para a namorada de um inimigo e brigas na madrugada, lá na calçada do bar do Sujo, na praça da Saudade. Às vezes entrávamos pelos fundos do teatro Amazonas e espiávamos atores e cantores nos camarins, exibindo-se nervosamente diante do espelho, antes da primeira cena. Mas aquele lugar, Varandas da Eva, ainda era um mistério.

Ranulfo, tio Ran, o conhecia.

É um balneário lindo, e cheio de moças lindas, dizia ele. Mas vocês precisam crescer um pouquinho, as mulheres não gostam de fedelhos.

Invejávamos tio Ran, que até se enjoara de tantas noites dormidas no Varandas. A vida, para ele, dava outros sinais, descaía para outros caminhos. Enfastiado, sem graça, o queixo erguido, ele mal sorria, e lá do alto nos olhava, repetindo: Cresçam mais um pouco, cambada de fedelhos. Aí levo todos vocês ao balneário.

Minotauro, fortaço e afoito, quis ir antes. Foi barrado no portão alto, cuspiu na terra, deu meia-volta, quase marchando para trás. Era um destemido, o corpo grandalhão, e um jeito de encarar os outros com olho quente, de meter medo e intimidar. Mas a voz ainda hesitava: era aguda e grossa, de periquito rouco, e o rosto de moleque, assombrado, meio leso.

Gerinélson era mais paciente, rapaz melindroso, sabia esperar. Já namorava de dar beijos gulosos e acochos, e nos surpreendia em pleno domingo guiando uma lambreta velha, roubada do irmão. Na garupa, uma moça desconhecida, de outro bairro. Ou estrangeira. A máquina passava perto da gente, devagar, roncando, rodeando o tronco de uma árvore. Depois acelerava, sumindo na fumaceira. Ele sempre gostou de desaparecer, extraviar-se. Gerinélson era e não era da nossa turma. Eu o considerava um dos nossos. Ele, não sei. Tinha uns segredos bem guardados, era cheio de reticências: não se mostrava, o rapaz.

O Tarso era o mais triste e envergonhado: nunca disse onde morava. Desconfiávamos que o teto dele era um dos barracos perto do igarapé de Manaus; um dia se meteu por ali e sumiu. Raro sair com a gente para um arrasta-pé. Ele recusava: Com esses sapatos velhos, não dá, mano. Um cineminha, sim: duas moedas de cada um, e pagávamos o ingresso do Tarso. E lá íamos ao Éden, Guarany ou Polytheama. Depois da matinê, ele escapulia, não ficava para ver as meninas da Escola Normal, nem as endiabradas do Santa Dorothea. Tarso queria vender picolés e frutas na rua, queria ganhar um dinheirinho só para entrar no Varandas da Eva. Mas era caro, não ia dar. Então tio Ranulfo prometeu: Quando chegar a hora, pago pra todos vocês.

Tio Ran, homem de palavra, foi generoso: espichou dinheiro para a entrada e a bebida. Depois tirou um maço de cédulas da carteira. Disse: Isso é para as mulheres. E nada de molecagem. Cada um de vocês deve ser um gentleman com aquelas princesas.

Contamos as cédulas: dava e sobrava, era a nossa fortuna. Compramos na Casa Colombo um par de sapatos, e tia Mira costurou uma calça e uma camisa, tudo para o Tarso. Quando ele experimentou a roupa nova, parecia outro, ia chorar de alegria, mas Minotauro, maldoso, debochou: Deixa pra chorar depois da farra, rapaz. Quem fica feliz de roupinha nova é moça.

Eles ficaram cara a cara, os olhos com faíscas de rancor. Tia Mira se intrometeu, com súplicas de trégua e paz. Os dois olharam para minha tia, os rostos mais serenos, o pensamento talvez em outras searas.

Marcamos a noitada para uma sexta-feira de setembro. Gerinélson pegou o dinheiro, quis ir sozinho, de lambreta. Tio Ran nos levou em seu Dauphine, parou quase na porta, nos desejou boa noitada. Quando íamos entrar, Tarso hesitou: deu uns passos para a frente, recuou, quis e não quis entrar. Ficou mudo, mais e mais esquisito, fechou-se. Nós o desconhecemos: luz e dança não o atraíam? Minotauro puxou-o pela camisa, enganchou a mão no pescoço dele, repetindo: Bora lá, seu leso. Nosso amigo abaixou a cabeça, concordando, mas com um salto se desgarrou, e correu para a escuridão.

Tarso, um desmancha-prazer. Deixamos o nosso amigo. A vontade não é de cada um e em cada dia? Minotauro soltou um grunhido, resmungou: Não disse? Roupinha nova é mimo pra mocinha.

Entramos. Um caminho estreito e sinuoso conduzia ao Varandas da Eva. Aos poucos, uma sombra foi crescendo, e no fim do caminho uma luminosidade surgiu na floresta. Era uma construção redonda, de madeira e palha, desenho de oca indígena. Mesinhas na borda do círculo, um salão no meio, iluminado por lâmpadas vermelhas. Uns casais dançavam ali, a música era um bolero. Minotauro apontou uma mesinha vazia num canto mais escuro. Sentamos, pedimos cerveja, um cheiro de açucena vinha do mato. E Gerinélson, se extraviara? Na luz vermelha, quase noite, Minotauro me cutucou: uma mulher sorria para mim. Não vi mais o Minotauro, nem quis saber do Gerinélson. Só olhava para ela, que me atraía com sorrisos; depois ela me chamou com um aceno, girando o indicador, me convidando para dançar. Não era alta, mas tinha um corpo cheio e recortado, e um rostinho dos mais belos, com olhos acesos, cor de fogo, de gata maracajá. Dançamos três músicas, e dançamos mais outras, parados, apertadinhos, de corpo molhado. Ela percebeu minha ânsia, me apertou com gosto, e me levou, no ritmo lento da música, para fora do salão. Por outro caminho me conduziu a uma das casinhas vermelhas, avarandadas, na beira de um igarapé. Ficamos um tempo na varandinha, no namoro de beijos e pegações. Depois, lá dentro, ela fechou a porta, e deixou as janelas entreabertas. O som de um bolero morria na casinha avarandada.

Ela me ensinou a fazer tudo, todos os carinhos, sem pressa, com o saber de mulher que já amou e foi amada. Passamos a noite nessa festa, sem cochilo, e muitos risos, de só prazer. Fez coisas que davam ciúme, carícias que não se esquecem. Perguntei como ela se chamava. Ela disfarçou, e disse, rindo: Meu nome? Tu não vais saber, é proibido, pecado. Meu nome é só meu. Prometo.

A voz e a risada bastavam, minha curiosidade diminuía. Nome e sobrenome não são aparências?

Não quis me ver nem ser vista à luz do dia; quando as águas do igarapé ficaram mais escuras do que a noite, ela pediu que eu fosse embora. Obedeci, a contragosto. Saí no fim da madrugada, caminhando na trilha de folhas úmidas. Naquela manhã o sol teimou em aparecer no céu fechado.

Voltei ao Varandas no mesmo dia, a fim de revê-la; voltei muitas vezes, sempre sozinho, nunca mais a encontrei.

O Tarso disse que não entrou no Varandas porque teve medo.

Medo?

Ele sério, e calado.

Minotauro me contou sua farra, cheia de façanhas. A grande gandaia, noite e dia, ele disse com uma voz que não tremia mais, voz bem grossa, de cachorrão. O Gerinélson me olhou de soslaio, sorriu de fininho, desconversou. Ele não se mostrava mesmo. Gostava das coisas só para ele, guardando tudo na memória, dono sozinho de seus feitos e fracassos.

Nos meses seguintes, ainda tentei ver a mulher, pulava de um clube para outro, os lupanares de Manaus. Até hoje, sinto ânsia só de lembrar.

Tia Mira dizia que eu estava babado de amor. Estás tonto por uma mulher, ela ria, observando meu devaneio triste, meu olhar ao léu.

O Tarso não quis conversar sobre aquela noite. Foi o primeiro a se afastar da turma: teve de abandonar a escola, queria ser prático de motor, ou, quem sabe, capataz numa fazenda do Careiro.

Três anos depois, meus tios Mira e Ran mudaram de bairro; os encontros com meus amigos tornaram-se fortuitos, minha vida procurou outros rumos. O único que cruzou o meu caminho foi Minotauro; cruzou por acaso, quando eu saía do bar Mocambo e ele ia visitar um amigo no quartel da Polícia Militar. Estava fardado, era soldado S1 e se preparava para o exame de suboficial da Aeronáutica. Servia na base terrestre, de guerras na selva. Não queria voar.

Sou homem com pés no chão, ele foi logo dizendo. É emocionante a gente se perder na mata, os perigos me atraem, mano. A gente entra na floresta, escuta os ruídos da noite e a noite é escura que nem o dia. É um desafio. Toda a cambada tem que caminhar naquele ziguezague escuro, dormir sem saber onde está, matar os bichos e encontrar a saída para a sede do comando.

Falava com desembaraço, cheio de si, alisando com os dedos grossos a boina azul. O rosto continuava assombrado, quase feroz, e a risada saía que nem uivo. Ele havia topado com o Gerinélson:

O leso do Geri viajou para São Paulo. Quer ser doutor, médico de mulher. Quer se aproveitar delas, riu o Minotauro, tenebroso, mostrando dentes de cavalo. Tu nem sabes… O Geri sempre foi sonso, andou pelo Varandas antes da gente, sempre foi caído por mulheres de todas as idades.

Dei um risinho chocho, sem vontade. Minotauro já era meu ex-amigo? Está em outro mundo, nossos pensamentos não se encontram. Foi o que eu remoí naquele instante.

E o Tarso?

Mais pobre do que eu, ele disse. Deve estar caído por aí. Pobre pobre não se levanta, mano. Nem soldado o coitado do Tarso pode ser.

O Minotauro me tratou com carinho. Não sei se naquele dia eu tive pena ou raiva dele. Desprezo, talvez.

Ele se despediu com um abraço forte, de estalar as costelas. Era socado, um monstro. Pôs a boina na cabeça e saiu andando, desengonçado, cumpridor de deveres.

Anos depois, num fim de tarde, eu acabara de sair de uma vara cível, e passava pela avenida Sete de Setembro. Divagava. E já não era jovem. A gente sente isso quando as complicações se somam, as respostas se esquivam das perguntas. Coisas ruins insinuavam-se, escondidas atrás da porta. As gandaias, os gozos de não ter fim, aquele arrojo dissipador, tudo vai se esvaindo. E a aspereza de cada ato da vida surge como um cacto, ou planta sem perfume. Alguém que olha para trás e toma um susto: a juventude passou.

Quando andava diante do Palácio do Governo, decidi descer a escadaria que termina próxima à margem do igarapé; parei no meio da escada e me distraí com a visão dos pássaros pousados nas plantas que flutuavam no rio cheio. Foi então que vi, numa canoa, um rosto conhecido. Era Tarso. Remou lentamente até a margem e saltou; depois tirou um cesto da canoa e pôs o fardo nas costas, a alça em volta da testa, como faz um índio. O corpo do meu amigo, curvado pelo peso, era o de um homem. Subiu uma escadinha de madeira, deixou o cesto na porta de uma palafita, voltou à margem e puxou a canoa até a areia enlameada. À porta apareceu uma mulher para apanhar o cesto. Reapareceu em seguida e acenou para Tarso. Num relance, ela ergueu a cabeça e me encontrou. Estremeci. Eu ia virar o rosto, mas não pude deixar de encará-la. Ela me atraía, e a lembrança surgiu agitada, confusa. A voz dela chamou: Meu filho! A mesma voz, meiga e firme, da moça, da mulher da casinha vermelha, no balneário Varandas da Eva. Era a mãe do meu amigo? Isso durou uns segundos. Por assombro, ou magia, o rosto dela era o mesmo, não envelhecera. Mal tive tempo de ver os braços e as pernas, a memória foi abrindo brechas, compondo o corpo inteiro daquela noite.

Tarso escondeu a canoa entre os pilares da palafita, e entrou pela escadinha dos fundos. A mulher já tinha sumido.

Permaneci ali mais um pouco, relembrando…

Nunca mais voltei àquele lugar.


HATOUM, Milton. A cidade ilhada. São Paulo: Companhia das Letras, 2009. p.7-14
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