O BERRACÃO foi uma
publicação literária acreana, em apenas dois números, que veio a lume no ano de
1978, com o poeta Clodomir Monteiro como editor responsável, com participação
de diversos artistas da região, entre poetas, ilustradores, professores,
dramaturgos, escritores. Na publicação , cujas folhas
vinham dentro de um grande envelope, constam poemas, ensaios, contos, ilustrações.
O contexto era a chegada das grandes fazendas e empreendimentos agropecuários,
a “zebunização” do Acre. Logo
na apresentação, escrevia-se: “Apresentamos o primeiro conjunto de exercícios respiratórios.
Encher-soltar, encher-soltar, encher-soltar. O berro mesmo ninguém sabe quando
vem. Ele começa bem dentro de nós, uma mistura de alegria, protesto e desejo de
ser mais.
Diferente da “fazenda
modelo” do Chico Buarque, mas, não havendo berro sem boi, boi sem pasto, e
pasto sem fazenda, devemos berrar antes que tudo se transforme num imenso
curral, nós entre os bois-bois.”
Tendo em vista os
40 anos da publicação, achamos por bem, não só o resgate desse trabalho, bem
como disponibilizá-lo para conhecimento, sobretudo, da nova geração, mas também
como valorização da nossa história e da nossa memória cultural. Nosso agradecimento
ao memorialista DALMIR FERREIRA, a quem pertence essas edições, e que também
fez parte das edições de O BERRACÃO.
TRÊS POEMAS DE
MAUÉS (Melo)
oh
! grilhões que acorrentam a vida
neste
mar ilusório
que
como uma dentrolite
prisioneira
em uma furna
impedida
de ver
de
receber
de
conceber
a
luz do sol
chora
implora...
quantos
barracos
a
desmoronar
por
entre os barrancos
que
envolvem as ilusões
camufladas
como sensações
eu
sou o meu corpo
que
ocia
por
entre as cortinas
que
sugam a consciência
de
minha inocência
G
R
I
L
H
Õ
E
S
poesia
ao pasto
fátima almeida
o sol queima
mas não arranca a
pele,
e o suor impulsiona
o corpo à luta
a luta à fome
que digam orações
mas pisem forte
a terra não ecoa
santos
ecoa bravura
coragem e vida
mas o santo ajuda
com a tua ajuda
abraça esse sol
de todo mundo
mas cerca teu campo
tua casa
teu pé não é pra
sapato
mas ele sai das
tuas mãos
olha bem teu
trabalho
e segura a terra
do tamanho do teu
berro
da tua barriga
deixa os pés de lado
e a roupa cara das
ruas
e as caras do
patrão
segura esse suor
que vai te servir à
razão
in fração
francisco moura
pinheiro
(dandão)
do bolso furado
cai teu vintém
e da bolsa
da
boca
a saliva é cara
o pão
pelos olhos da cara
não se vê
a fome
é que rói
que mata
que come
na boca fura
esvaem as palavras
ruminam essas letras
e o poema perece
fraquinho
com fome
de inanição
dois textos de
Clodomir Monteiro
?
o
rancho construído
de
alvenaria
violenta
ou não
o
contexto
a
rua carroçável
o
tempo inteiro
elimina
ou não
o
pedestre ?
o
açude habitado
de
mitos e visagens
transplanta
ou não
o
nordeste ?
o
modelo sulista
pastando
na economia
violenta
ou não
a
ecologia ?
asfalta
esfolando
o
seringal
afasta
ou devassa
seu
final ?
a
vida sangrando
no
copo de cada dia
coagula
ou não
a
agonia ?
História de uma
viúva vinda do seringal, cega, cuidando sozinha, num barraco da cidade nova,
margem direita do rio Acre, de seus dez netos.
enquanto
a chuva cai na terra solta
o
pedaço de madeira misturado com o
sangue
rola pelo barranco até o rio
no
barraco a perna pendurada no fim
da
tarde esperando a dor passar tem
hora
certa tem forme gorda tem febre
berra
muito sua já discriminada dor
estimula
a sede que se mata na lama
enquanto
sua dor desce pelas costas
a
fala misturada de catarro empurra
tempo
de trabalho reforçado na roça
do
patrão bonzinho aviando sua cota
o
pão o peixe o preço a mão o filho
e
choros e dores e amores demorados
e
xingos e ódios romances demolidos
e
a mão tateando procurando a porta
e
a voz já rouca desfiando os netos
enquanto
fede a merda ressecando ao
pé
do rancho o perfume de uma folha
bem
guardada e guardados da mocinha
no
peso de sua noite mal dormida já
nem
conta já nem sabe nem se lembra
em
tanto tempo de insônia dividindo
pedaço
por pedaço de sua existência
enquanto
a chuva cai na terra solta
o
pedaço de madeira mistura salta
sangue
de uma perna apodrecida vaza
já
sabida de estradas e bem curtida
ora
era o ouro negro ora era o gado
varadouros
forrós castanha e igapós
pedindo
ao santo a graça a promessa
a
procissão levando prece a canindé
a
mão beijando em troca o aviamento
sem
ele nem a mata se daria o leite
que
se deu pois sem ele nem o índio
correria
se correu mas sem ele fala
o
texto marreteiro e o tema regatão
sairia
se saiu um treme-treme seria
uma
loucura pois perdendo monopólio
usura
coronéis apelidados de heróis
conquistadores
no medo pois a força
forma
a fome a febre e seca sua dor
lembrando
os guardados de mocinha
abre
asas vai voltando pro nordeste
mas
cada neto vai seguro pelas mãos
enquanto
sonha vai rezando a oração
padre
cícero proteção para meu povo
meu
padim leva os netos pro bom fim
a
caridade um bom descanso para mim
Dois poemas
de arribação
Francisco J. Nascimento
13
neste mapa rústico
talhado em chão
de sangue mestiço
e suor de homens
fugidos da seca
deixei meu coração
plantado
as grandes
queimadas
destruirão suas
raízes
mas nascerei sempre
novo
quando brotarem os
grandes roçados
14
os primeiros ventos
dos Andes
empurraram as
nuvens
enfunaram as pipas
e a cidade
anoiteceu mais cedo
com medo do frio
dizem que nesse
tempo
os espíritos da
mata
vem para fora
atrás de abrigo
para se aquecerem
Cristo Rico
Francis Mary
na vida do dia
cruzes
velas, pobres
orações
o silêncio solene
que cobre tudo
intimidando
o castiçal de prata
no altar
e a vida pingando
na mão do fiel
morto de fome e fé
o santo colorido
na vidraça
a taça de ouro
com o vinho sagrado
sangue de Jesus
Crucificado
e a boca do fiel
rezando
fedendo à cachaça
comprada com o
dinheiro
pedido emprestado
no boteco da praça
Missa
Laélia Maria
a cruz no branco do
altar
na mão as contas
passando
ave-marias
salve-rainhas
cheiro de incenso
fumaça que envolve
pecador promessa
perdão
padre púlpito
sermão
e o dia da cobrança
com o saldo
vela pro santo
devolve esperança
na boca benditos
cantando
as mãos na conta
rezando
da fila os olhos na
cruz
com a vela
o saldo da vida
OREMUS...
Árvore-borracha
J. Roberto Gomes de Souza
em tronco verde
leitoso branco
em seiva era
látex ouro
num
clima quente
em
verde selva
vieste
um dia
nascer
de verde
em varadouro
de pique em dique
em golpe humano
choraste vida
de
faca a catre
de
tacho a fogo
o
leite visco
o
cernambi
chorou no tronco
coalhou no tacho
foi defumado
virou borracha
na
esperança
gerou
vingança
virou
progresso
criou
contraste
ACREANO
Flávio Siqueira
quero o
meu amigo distante
a chuva suave e doce
o vento que sopra manso
as tardes misteriosas
a catraia o varadouro
o tapiri a cachaça
o leite da árvore correndo
o cheiro da terra
molhada
a mata que nunca se
acaba
a água
não quero a mata deitando em campo
o cheiro a merda de boi
o berro que fica de
herança
o roubo feito na fiança
o contrapeso na balança
a conta que nunca
alcança
o preço alto do
comerciante
o analfabeto a cegueira
o imposto exorbitante
o
deserto
quero a posse da terra minha
o fogão de lenha
a justiça
MAPINGUARI
Elzo Rodrigues
parte de homem
animal de porte
na selva
pés redondos
forma de pilão
na relva
no jeito horroroso
a fera humana
grita
no rastro de tem
o rosto sem nome mapinguari
resto de tempo trai
o caçador
some na
caçada
mito
mata
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