João Guimarães Rosa (1908-1967)
Bem baixo das colinas de ondas verdes,
onde o o sol se refrata em agulhas frias,
descem todas as sereias dos
mares e dos rios,
irreais e lentas, como
espectros de vidro,
para os palácios de
madrépora de Anfitrite,
em vale côncavo,
transparente e verde,
num recanto abissal, como
uma taça cheia,
entre bosques e sargaços,
espumosos,
e rígidos jardins
geométricos de coral...
Por entre os delfins,
sentinelas de Possêidon,
afundam, suspensas, soltas,
como grandes algas,
carregando os jovens
afogados:
Ondinas das praias,
flexosas,
Nixes da água furtacor do
Elba,
Havefrus do Sund e Russalkas
do Don...
Loreley traz no esmalte doce
dos olhos
duas gotas do Reno...
E Danaides laboriosas se
desviam dos cardumes
de Nereidas,
que imergem, ondulando as
caudas palhetadas
dos seus vestidos justos de lamé...
Mas a Iara não veio!...
Mas a Iara não vem!...
Porque Iara tem sangue,
porque a Iara tem carne,
sangue de mulher moça da
terra vermelha,
carne de peixe da água gorda
do rio...
Iara de olhos verdes de
muiraquitã,
cintura pra cima de cunhantã
cintura pra baixo de
tucunaré...
que veio, dormindo, Purus
abaixo,
filha do filho do rei dos
peixes
com uma índia branca Cachinauá...
Lá bem pra trás da boca
aberta do rio,
onde solta seus diabos
o bicho feroz da pororoca,
ela ficou, cheia de medo,
brasiliana, tapuia, morena,
Tão orgulhosa,
que não quer ser desprezada
pelas outras...
E a Iara é preguiçosa,
tão preguiçosa,
que não canta mais as trovas
lentas
em nheengatu :
– “Iquê, ianê retama icu,
Paraná inhana tumassaua
quitó...”
Nem mais se esforça em
seduzir
o canoeiro mura ou o
seringueiro,
meio vestida com a gaze das
águas ,
na renda trançada dos
igarapés...
E eu tenho de chorar:
– “Enfeitiça-me, ó Iara,
que eu vim aqui pra me deixar
vencer...”
Mas custa-me encontrá-la,
e só à noite sem bordas
dessas terras grandes,
quando a lua e as ninféias
desabrocham soltas,
posso beijá-la,
nua,
dormida,
esguia,
bronzeada,
oleosa,
na concha carmesim de uma
vitória-régia,
tomando o banho longo
de perfume e luar...
ROSA, João Guimarães. Magma. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1997. p.16-19
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