Alfredo Ladislau (1882-1934)
excerto de Terra Imatura
Foto de Rui Pará |
Ainda no começo do mundo, no seio da primeira tribo, contavam os velhos
adivinhos, senhores dos segredos da natureza, que, meado o ano em diante, no
período masculino da lua, quando esta se escondia no horizonte, ilusionando
descer a encosta posterior das serras, coabitava com as venturosas virgens da
sua predileção.
O encanto desses conúbios, mandavam os velhos
que o imaginassem, porque a linguagem humana não o podia descrever.
Ora aconteceu que a moça Nayá, filha do venerável chefe, princesa da
tribo, – de epiderme clara e cabeleira mais ruiva que uma estriga de milho
verde, se impressionara com a sugestiva fantasia daqueles deíficos amores. E
por isso, noites avançadas, quando o sono fechava a vida da taba, e a erótica
divindade simulava tocar nos longínquos cabeços, a tresloucada cunhã galgava as
montanhas, sôfrega de mergulhar a alma na envolvência daqueles luminosos
afagos, tão exalçados pelos convincentes anciãos.
Afirmavam eles que a deusa hermafrodita, com
a radiosa insuflação dos seus beijos, transmudava em luz o corpo das virgens
predestinadas, apagando-lhes a tinta vermelha do sangue, vaporizando-lhes a
carne rosada.
E fugia depois, conduzindo as afortunadas amantes,
em abraços voluptuosos, sugando-lhes a vida, para deixá-las, assim
desmaterializadas, nos leitos nupciais das nuvens elevadas.
E por essa forma, iam nascendo as estrelas do
céu...
Nayá ansiava pela maravilhosa mudança do seu
grosseiro viver terreno naquela divina e sempiterna existência eterizada.
Mas a realidade desengana-a constantemente:
ao vencer cada grimpa, já o perseguido e deluso noivo se debruçava noutra
colina, mais fascinador e cada vez mais fugiente à sua doentia paixão.
Esse mal, lânguido e sutil, definhava a
suspirosa e sofredora moça. Não houve filtros, destilados por mãos miraculosas
de sábios pajés, nem sobrenaturais sortilégios de elevada magia, capazes de
curá-la daqueles mórbidos anseios, aliás tolerados, pela superstição de que o
astro filógeno acederia aos loucos arroubos daquela demência amorosa.
E assim vivia essa jovem enferma, a montivagar nas noites enluaradas,
dilacerando-se pelas escarpas, uma Psicose viva, corporificada, aos boléus
pelos declives, em gargalhadas, aos soluços, cantando delírios.
Imagem in Portal Obidense |
Certa vez, quando a sombra da insânia mais
lhe anuviava o toldado entendimento, viu no espelho de um lago, feliz e
tranquilo, a imagem branca do pálido bem amada, faiscando luz.
Atirou-se ao pélago iluminado, bracejando
agônicos paroxismos.
Semanas inteiras, a gente da tribo bateu,
inutilmente, os negros arcanos das selvas, circunjacentes à grande taba.
Os deuses selvagens, entretanto, eram bons
também e agradecidos. A lua, que gerara as águas, os peixes e as plantas
aquáticas, quis recompensar o sacrifício daquela vida virgem. Recusando-se
colocá-la no firmamento, fê-la “estrela das águas”, – transformando o lírio
daquela alma nessa soberana ninfeia, – poema triunfal de cor e perfume, que
cantará, eternamente, nas classificações da nossa flora.
Assim o realizará.
E quando fez nascer, do branco e macerado
corpo da infeliz cunhã. A misteriosa planta, desabrochou-lhe a imensa candura
do espírito na grande flor perfumada, abrolhando em espinhos toda a mágoa que
tiranizara a dementada donzela. Depois, dilatando tão justo prêmio,
estirou-lhe, quando pôde, a palma das folhas, para maior receptáculo dos afagos
de sua luz, amorosamente reconhecida.
À noite, Nayá desnuda-se, desatando a
roupagem esvoaçante das longas pétalas, para receber, no tálamo das águas
mansas, os beijos opalizados do luar.
Esta é a lenda da Vitória-régia de Lindley.
LADISLAU, Alfredo. Terra Immatura. Rio de
Janeiro: Civilização Brasileira, 1933. p.210-211
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