V. Ex.ª Rodrigo Damasceno
Permita-me pular as formalidades que se exigem
nessas ocasiões. Da última vez que o encontrei, junto aos jovens que ajudei a
organizar em nossa cidade, você era apenas um candidato em potência à prefeitura de Tarauacá.
Na ocasião, você me falava de seus projetos e sonhos para uma Tarauacá melhor.
O tempo, a longos passos, passou. Agora você é o prefeito de nossa cidade. O
poder fascina, e fácil, alucina. Muitos gastam toda uma vida para atingi-lo. E
quando o atingem não sabem o que com ele fazer. Você já galgou uma posição
importante ainda jovem. Se o jovem, por um lado, não tem toda a experiência e
sabedoria dos velhos, por outro, traz em si a chama de um fogo novo e
renovador. O ousado presidente chileno Salvador Allende certa vez, dirigindo-se
aos jovens da Universidade de Guadalajara, afirmou que ser jovem e não ser
revolucionário chega até ser uma contradição biológica. Revolução, essa palavra
obsoleta e desacreditada em nosso tempo, depois de tantas barbaridades
cometidas em seu nome. Parece que a revolução de nosso tempo é fazer bem aquilo que fazemos. Este é o teu momento, caro prefeito. Não o deixe escapar. Faça a tua
revolução. Não pergunte se o momento é propício. Faça propício o momento. Tome
a história em suas próprias mãos para que no futuro suas conquistas ou
fracassos confirmem sua inteligência ou estupidez. Você é médico, preparou-se
para cuidar da vida, sanar os males do corpo. Agora você tem uma paciente
maior. Mas o mesmo cuidado e dedicação são exigidos.
Caro Rodrigo, não pense que almejo lhe dar
alguma lição de moral, o que seria até imoral de minha parte. A gente é tão
pouco para o tanto que se finge ser. Estabeleço uma conversa de jovem para jovem.
Ofereço o olhar de quem está de fora, por isso talvez vê melhor do que quem
encontra-se imerso no sistema. Mas vamos ao que interessa. Estamos ainda no ano
do centenário de Tarauacá. Ao voltar o olhar para a nossa história, nos
deparamos com uma estranha constatação: temos um presente mais pobre que o
passado. E mais: sequer soubemos olhar para o passado para sair do atraso do
presente. Entenda-me: não almejo fazer aqui uma apologia ou culto do passado. O
quero dizer é que em vez de progredir, regredimos. O velho Agostinho de Hipona
já filosofava que não progredir, é regredir. Mas o nosso atraso não é propriamente
econômico, que, bem ou mal, vamos levando. O nosso grande e principal atraso é
cultural. Mentes pequenas morrem ao redor do próprio umbigo. Estamos no século
dos homens medíocres. Estar, porém, no século dos homens medíocres não
significa nos fazer medíocre com os medíocres. Esta será a diferença pela qual
a história reconhecerá os seus autênticos líderes.
Caro Rodrigo, não sou historiador, mas há
alguns anos venho me dedicando, embora de modo informal, sobre, não só, a
história de Tarauacá, mas do Acre de um modo geral, e mesmo da Amazônia. Por
que? Para quê? Não busco saber para as vaidades pessoais. Nossa história não é
menos nem mais importante que qualquer outra história. É tão somente a nossa
história, talvez nem nossa, se continuarmos a ignorá-la. Por isso é preciso
conhecê-la; conhecê-la para entendê-la; entendê-la para amá-la; e amando-a,
desenvolvê-la. Não surgimos do nada, portanto, não é o nada que nos aguarda.
Não somos filhos do destino. O destino é antes resultado do que cada um faz com
a história que recebe. Não cabe a nós julgar o que aqueles que nos antecederam
fizeram com a história. O que nos compete é saber o que estamos fazendo nós com
a história que nos foi confiada agora.
Tarauacá: 100 anos de história oficial
político-administrativa. Mas a história é bem mais antiga. Primeiro nossos
povos indígenas a habitaram em paz por longos séculos. Depois, a partir da
década de 70 do século XIX, os primeiros desbravadores começaram a erguer seus
tapiris às margens dos rios Tarauacá e Muru. Daí até o ano de 1913, foram muitos
os trabalhos e os conflitos, em que se vazou na mesma proporção o leite branco
das seringueiras e o sangue vermelho dos povos indígenas. De 1913 a 2013, a
cidade, sob o impulso do ouro negro da borracha, foi da prosperidade ao marasmo
de nossos dias. Não custa recordar que já em 1914 a cidade já contava com
jornal próprio; já em 1916 tinha cinema; já em 1933 inaugurava o primeiro
teatro do Acre, o agora Teatro José Potyguara.
Pergunto-vos: cem anos de história não são
suficientes para se ter um espaço próprio para se preservar e se contar a história
de Tarauacá? Será que vamos esperar mais cem anos para que alguém possa se dar
conta da importância da memória e da história de um povo, como este que se
formou às margens de nossos rios e igarapés? O que estamos esperando: um sinal
dos céus ou que o tempo acabe de vez com aquilo que ainda nos resta?
Já perdemos muito, sr. Prefeito. Precisamos,
e urge, de uma casa de memória, museu, ou seja lá o que for, para abrigar
documentos, objetos, relatos etc. que ajudem a montar o mosaico de nossa
história, para que a geração de hoje bem como a de amanhã não se perca
anestesiada pela ignorância de seu passado, de sua própria história, portanto, de si mesmos também.
Caro Rodrigo, nenhum de teus antecessores
teve a ousadia ou a sensibilidade para com essa parte de nossa história. Não
permita que a tua gestão se enverede por esse mesmo caminho. Ouse. Transforme
essa cidade com o fogo da cultura, que a tua gestão pode ajudar a fomentar. Não
o estou colocando como uma espécie de salvador da pátria, o que não acredito e seria ridículo, até.
Mas você, com sua equipe, tem as armas políticas para operar um novo rumo
cultural na história de nossa cidade. Não se perca da mediocridade de um
governo que não faz outra coisa senão maquiar a cidade com beiras de ruas pintadas, remendadas
e mal-feitas. Sim, nosso povo precisa de investimento sério na saúde, na
educação, na agricultura, mas também na cultura.
Tarauacá. Esta é a cidade que nós amamos.
Esta é a cidade que viu nascer um dos mais populares poetas brasileiros, J.G.
de Araújo Jorge. Esta é a cidade que deu à Amazônia um de seus maiores
estudiosos, Djalma da Cunha Batista. Esta é a cidade que deu ao Acre dois de
seus governadores, Rui Lino e Nabor Júnior. Esta é a cidade que também deu ao
Piauí um de seus senadores, João Mendes Olímpio de Melo. Esta é cidade que
acolheu um dos mais importantes escritores da Amazônia, Leandro Tocantins. Esta
é a cidade que inspirou os mais arroubados trabalhos de José Potyguara. Esta é
a cidade que construiu o primeiro teatro no Estado do Acre. Esta é a cidade da
mulher bonita, que deu ao estado inúmeras misses. Esta é a cidade do abacaxi
gigante. Esta é a cidade da segunda maior festa religiosa do Acre. Esta é a
quarta cidade em importância do Estado. Esta é a cidade de todos nós: de nossos
pais: de nossos avós: de nossos bisavós: de nossos povos indígenas. É por esta
história que eu vos escrevo, caro Prefeito. Fazer história é não esquecer a
memória.
Com os votos de apreço,
Isaac Melo
Curitiba, 18 de novembro de 2013
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