ROGEL SAMUEL
Fernando Pessoa é perfeito. Em tudo o que fez. Leio
«O guardador de rebanhos», a sua técnica de meditação. Na melhor tradição dos
mestres Zen, ele diz: sou um pastor de pensamentos.
"Sou um guardador de rebanhos
O rebanho é os meus pensamentos
E os meus pensamentos são todos sensações.
Penso com os olhos e com os ouvidos
E com as mãos e os pés
E com o nariz e a boca.
Pensar uma flor é vê-la e cheirá-la
E comer um fruto é saber-lhe o sentido.
«Por isso quando num dia de calor
Me sinto triste de gozá-lo tanto.
E me deito ao comprido na erva,
E fecho os olhos quentes,
Sinto todo o meu corpo deitado na realidade,
Sei a verdade e sou feliz."
Reúne ele os pensamentos como um pastor suas
ovelhas. Para que não se percam. Não se extraviem. Não divaguem. Não delirem.
Reúne suas ovelhas dentro de si. É o que o Zen diz: "Viver dentro da
casa". Dentro da casa é dentro de si. "Permanecer como se é, estar
completo em si mesmo... cada manhã é uma boa manhã, cada dia um lindo dia, não
importa a tormenta que esteja desabando..." (Suzuki, "Viver através
do Zen").
Diz Suzuki que o poeta Hakuin (1685-1768) explica
aquilo assim:
"As formigas vagarosas lutam para carregar as
asas de uma libélula morta;
As andorinhas da primavera pousam lado a lado num
ramo de salgueiro;
As fêmeas dos bichos-da-seda, pálidas e cansadas,
ficam imóveis segurando as cestas repletas de folhas de amora;
Os garotos da vila são vistos com rebentos de bambu
roubados arrastando-se através das cercas quebradas.»
Mas não é para ser compreendido! Se for
compreendido, terá outro sentido. Nossas experiências diárias «são de fato
experiências do Zen, mas não conseguimos reconhecer isso porque nós, como seres
intelectuais, perdemos algo que nos permitia entender o significado".
Que perdemos? Perdemos a beleza. A claridade. Não
vemos a beleza dos pássaros no céu, as flores na terra. A luz sobre a montanha,
as sombras estreladas da noite.
A vida em si é beleza, algo misterioso. Escapa à
compreensão intelectual.
Sotoba, um dos poetas da dinastia Sung, escreveu:
"A chuva nebulosa no Monte Lu,
E as vagas encapeladas no Che Kiang;
Quando ainda não se esteve lá
Muita mágoa se possui;
Mas uma vez lá e para casa se encaminhando,
Quantas coisas prosaicas se observa!
A chuva nebulosa no Monte Lu,
E as vagas encapeladas no Che Kiang."
[Suzuki, "Essays in
Zen Buddhism", I, p. 22.]
"Não há nada especial": O mesmo velho
mundo... e não obstante deve haver algo novo e belo na nossa consciência, pois
de outra forma não se poderia dizer: "Está tudo o mesmo".
Uma grande mudança, uma grande iluminação teve
lugar. Mas tudo está o mesmo.
Por isso um monge jardineiro aproximou-se certa vez
do mestre e manifestou-lhe o desejo de ser iluminado no Zen. O mestre disse:
"Venha novamente quando não houver ninguém por perto". No dia
seguinte, o monge observou que não havia ninguém perto e implorou-lhe para
revelar o segredo. Disse o mestre: "Aproxime-se mais de mim". O monge
chegou mais perto dele. Disse então o mestre: "O Zen é algo que não pode
ser transmitido por palavras".
Algum segredo foi revelado? Sim, o sol brilha no
luminoso dia. E ele está alegre e feliz.
Pessoa reúne seus pensamentos como um jogador reúne
suas cartas de baralho. São os pensamentos-realidade, pensamentos-pedras.
Desconfia das aparências, das ilações. O Ser só
existe quando se torna consciente de si mesmo, diz Suzuki. Mantêm-se na arte da
atenção, da presença. Quando ver, ver. Quando ouvir, somente ouvir. Não sair. A
distração, para o mestre Zen, é a morte. Como para o lutador de espadas. A
alegria, a felicidade está no momento presente, no fragmento presente.
E os meus pensamentos são todos sensações.
Penso com os olhos e com os ouvidos
E com as mãos e os pés
E com o nariz e a boca.
Pensar uma flor é vê-la e cheirá-la
E comer um fruto é saber-lhe o sentido.
O passado é um cadáver morto e podre, o futuro é
ilusão e desconhecido. Passado e futuro trazem confusão mental, sofrimento. Se
me deixo na confusão de minhas ilusões fico perdido e em perigo, como quem
escala a montanha. Ver é ver, pensar é pensar. Cada um de cada vez. Ver e
pensar ao mesmo tempo é a loucura burra das fantasias irreais. Uma realidade só
se dá única. Ver e estar consciente de que estou vendo, pensar e estar
consciente de que estou pensando. Um guardador de rebanhos.
É por isso que digo que Pessoa era perfeito, em
tudo o que fazia, que fechava os olhos e deitava na relva. Pleno. Na rainha das
meditações, a realidade plena. Plenamente alcançada. Desperto. Livre.
Como diz o Zen: "Seguro uma espada em minhas
mãos e fico com as mãos vazias".
Um comentário:
obrigado... por Fernando Pessoa
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