Carlos Drummond de Andrade
Como é o lugar
quando ninguém passa por ele?
Existem as coisas
sem ser vistas?
O interior do apartamento
desabitado,
a pinça esquecida na gaveta,
os eucaliptos à noite no caminho
três vezes deserto,
a formiga sob a terra no
domingo,
os mortos, um minuto
depois de sepultados,
nós, sozinhos
no quarto sem espelho?
Que fazem, que são
as coisas não testadas como
coisas,
minerais não descobertos – e algum
dia
o serão?
Estrela não pensada,
palavra rascunhada no papel
que nunca ninguém leu?
Existe, existe o mundo
apenas pelo olhar
que o cria e lhe confere
espacialidade?
Concretitude das coisas: falácia
de olho enganador, ouvido falso,
mão que brinca de pegar o não
e pegando-o concede-lhe
a ilusão de forma
e, ilusão maior, a de sentido?
Ou tudo vige
planturosamente, à revelia
de nossa judicial inquirição
e esta apenas existe consentida
pelos elementos inquiridos?
Será tudo talvez hipermercado
de possíveis e impossíveis
possibilíssimos
que geram minha fantasia de
consciência
enquanto
exercito a mentira de passear
mas passeado sou pelo passeio,
que é o sumo real, a divertir-se
com esta bruma-sonho de
sentir-me
e fruir peripécias de passagem?
Eis se delineia
espantosa batalha
entre o ser inventado
e o mundo inventor.
Sou ficção rebelada
contra a mente universa
e tento construir-me
de novo a cada instante, a cada
cólica,
na faina de traçar
meu início só meu
e distender um arco de vontade
para cobrir todo o depósito
de circunstantes coisas
soberanas.
A guerra sem mercê, indefinida
prossegue,
feita de negação, armas de
dúvida,
táticas a se voltarem contra
mim,
teima interrogante de saber
se existe o inimigo, se
existimos
ou somos todos uma hipótese
de luta
ao sol do dia curto em que
lutamos.
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