Regina Amélia D’Alencar Lino
Em uma casinha coberta de palha de paxiúba e
assoalho de madeira bem limpinho, numa madrugada de muita chuva, mês de fortes temporais, ecoou um choro de
vida pela densa floresta amazônica, quando dona Iraci Lopes Mendes, juntou toda
a energia que lhe restava para dar à luz Francisco Alves Mendes Filho, o Chico Mendes. Era
15 de dezembro de 1944, no Seringal Porto Rico, na Colocação Bom Futuro, no
pequeno município de Xapuri, localizado no meu amado Acre.
Quando a notícia de seu nascimento se
espalhou entre os raros e distantes vizinhos, ouvira-se os comentários: "É
menino homem, nasceu cabeçudo e zoiudo, coisa de gente inteligente."
Chico cresceu e se criou como todas as
crianças dos seringais acreanos. Arrastava-se pelas tábuas lisas de sua casa na
fase de engatinhamento, marcara seus pézinhos na poeira do quintal varrido
pelos galhos da palmeira do açaizeiro; mamava nos seios de sua mãe; comia bolinho "capitão" feito de arroz, feijão e
farinha, amassados com as mãos; pulava de galho em galho nos pés de manga,
graviola, se fartando de seus frutos, além de biribá, genipapo e banana. Entretia-se com os irmãos construindo os
brinquedos com sucatas, bichinhos e bola de látex; banhava-se nos rios e
igarapés; subia no pau de sebo; apreciava o deslizar das cobras; a caça da capivara
que lhe servia de alimento; a pesca do mandim; o sabor da macaxeira bem quentinha
derretendo em sua boca, da tapioca, do cuscuz e do açaí.
Com tudo isso, a vida no seringal era muito dura, e por essa
razão, desde a mais tenra idade, Chico começara a trabalhar e aprendera com seu
pai Francisco Alves Mendes, o ofício de seringueiro. Dessa forma, amar e
respeitar a floresta, fonte de sobrevivência para sua família, fora uma das
primeiras lições apreendidas por Chico criança. Assim, enquanto dona Iraci, sua mãe,
ocupava-se dos cuidados domésticos e da criação dos filhos menores, ele saia
cedinho, de madrugada, calçando os sapatos de seringa, com seu genitor, para
colher o látex das seringueiras nativas, as castanhas do Pará, fonte de
proteína, produzida por uma das mais majestosas árvores que existem, a castanheira, e tudo mais que a
floresta lhes ofertava.
Nos seringais, lugares longínquos, raramente
havia uma escola e por essa razão, Chico Mendes aprendera a ler por volta dos 19 e 20 anos, lições ensinadas
por Euclides Távora, um comunista cearense que participara do levante comunista
de 1935 e da Revolução de 1952 na Bolívia. Ao retornar para o Brasil, Euclides decidiu
fixar residência em Xapuri, por ser próxima à fronteira boliviana, e, ao
conhecer Chico se propôs alfabetizá-lo.
O conhecimento das letras, lhe dera a
oportunidade de compreender melhor o universo em que vivia, ampliando-o de tal
forma, que ao conhecer novas realidades, fez corretamente a leitura de códigos
antes indecifráveis, tornando-se além de seringueiro, sindicalista, ativista
ambiental, vereador em Xapuri pelo MDB, e um dos fundadores do Partido dos
Trabalhadores em seu município.
Chico poderia ter tido outro destino, se, em
seu DNA, não carregasse características que normalmente marcam a personalidade
dos líderes: consciência, indignação, compromisso e coragem para lutar e se
opor a exploração e manipulação da classe dominante, e se Euclides Távora não
aparecesse em sua vida. Com carinho afirma Ilzamar: "Euclides foi enviado
por Deus. Sintonizava Chico com o mundo, quando ligava o radinho de pilha na
BBC de Londres e lhe mostrava os recortes de jornais que carregava em uma pasta
aonde falava da ditadura, dos refugiados e com ele questionava como seria a
vida daquele momento para frente".
Quando Chico e seu José Moacir Bezerra, pai de Ilzamar, toda
boquinha da noite sentavam para conversar, concluíam que precisavam dar um
basta e mudar radicalmente a relação de trabalho que existia entre o patrão e o seringueiro, pois dentre as
barbaridades cometidas, o pai de Ilzamar relatava, por exemplo, que era
chicoteado pelos jagunços de seu patrão, quando o contrariava.
Chico ao comandar os "empates" -
uma corrente pacífica que os seringueiros faziam com seus corpos, com o
objetivo de proteger as árvores da floresta, que estavam sendo dizimadas,
provocara a ira de fazendeiros que queriam derrubá-las para transformar a área
em pastos para gado e explorá-la a qualquer custo, de maneira predatória, sem
considerar os prejuízos que causaria as gerações futuras. Chico passou a denunciar esses fatos e a
contrariar interesses que os levaram a morte.
Quando Chico Mendes foi assassinado, em 22 de
dezembro de 1988, o mundo todo ficara estarrecido, perplexo – mesmo tendo sido
sua morte por ele anunciada – pois seu
ativismo havia tomado fôlego internacional.
Chico deixou lições e saudades. Algumas do
mito, outras, reais e mais íntimas do
homem simples, generoso, sensível, capaz de lutar por uma causa até as últimas
consequências.
Um dia, viajando de Brasília para Rio Branco,
sentei-me ao lado de sua viúva, Ilzamar Mendes, que à época ainda residia em
Xapuri e expressava grande preocupação em relação ao trauma vivido pela
família, especialmente por Elenira, sua filha e de Chico por ter presenciado o
assassinato do pai.
Contou-me que no dia da morte de seu marido,
Chico amorosamente havia sentado no chão da casa – um hábito comum das pessoas
que vivem nos seringais e em casas de madeira na Amazônia, em razão do forte
calor que faz, para refrescarem-se – com ela e as crianças – Elenira e Sandino –,
e como Elenira era maiorzinha, tinha 4 aninhos, disse-lhe as seguintes
palavras: "se papai morrer, quero
que você seja valente e corajosa e, quando crescer, estude Direito e defenda os
pobres".
Após abraçá-los, colocou Sandino no colo para tomar banho lá
fora, mas Ilza não permitiu que o filho fosse com o pai porque estava muito
gripado e lembrou-lhe que havia um balde cheio de água na cozinha para ele tomar
banho e não ter que sair também para fora da casa. Ao entregar Sandino nos
braços de sua mulher, com a toalha nova jogada nas costas dirigiu-se ao
banheiro e foi covardemente alvejado. Quando Ilza e as crianças correram para
socorrê-lo, Chico veio na direção deles
cambaleando, momento em que a fumaça de polvóra os cobriu. Ele pedia socorro.
Os quatro caíram no chão e sua cabeça no colo de Ilza. Suas últimas palavras
foram: a Elenira...
A vida da família de Chico virou de cabeça
para baixo. De repente, filhos, inclusive Ângela, a filha mais velha de seu
primeiro casamento, e mulher foram subtraídos da maneira mais violenta de sua
convivência, deixaram de ouvir seus conselhos, perderam a referência da
autoridade paterna, perderam sua proteção, passaram a receber alimentos de
amigos para aplainar a fome, sentiram-se fragilizados e amedrontados por toda a
repercussão de sua morte.
Na terça-feira, 10 de dezembro, na Comissão
de Educação, Cultura e Esporte da Câmara dos Deputados, a deputada Janete
Capiberibe PSB-AP, apresentou o PLC 95/2013, projeto que declara Chico Mendes
Patrono do Meio Ambiente no Brasil. Segundo a parlamentar, a justa homenagem se
dá pela luta de Chico pela preservação da Amazônia e em defesa dos povos da
floresta. Após 25 anos de seu assassinato,
os ideais de Chico colocaram na pauta dos governos do mundo a ideia do
desenvolvimento sustentável e provocam consciências e instituições, a repensar,
sempre, suas relações com a natureza e o meio ambiente.
O choro forte que das entranhas de D. Iraci,
uma mulher simples e cabocla, ecoou pela floresta naquele 15 de dezembro,
transformou-se em canto, que ao tentarem emudecer, espalhalhou-se por todo o
planeta, tornando-se mais forte.
Ouçam!!! O canto das águas, o canto dos ventos, o canto dos pássaros, do balançar
das árvores, é a voz de Chico embalando as florestas.
Regina
Lino
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