Carlos Drummond de Andrade
I
Ao sentir nos pássaros
tanta liberdade
e aéreo poder,
imagina um pássaro
superior a todos
e tão invisível
que seu voo deixe
sensação de sonho.
Com leveza e graça
o homem pensa Deus.
II
No mais alto ramo
Deus está pousado
com uma garra apenas
e fita o mundo.
Do mais alto ramo
desfere voo
e sai por aí
bicando as coisas,
indiferente às coisas
bicadas,
encantadas.
III
Bica-me Deus
de manso nos olhos,
antes referência
que repreensão.
Alisa o bico
no local. E dói.
Ao sumir crocita:
"Hoje te perdôo."
O que Deus perdoa,
só o sabe Deus.
IV
Deus rumina
que fazer, acaso.
Mais um terremoto?
De que proporções?
Uma nova guerra?
De quantas nações?
Que margem ceder
ao capricho do homem?
Vai nascer um artista?
Nascerão idiotas?
Surgirão robôs?
V
Ao findar o tempo
tudo se acomoda
à sua vontade.
Já não há projeto
de outro Deus ou vários.
Laços entrançados,
gemidos, crepúsculo
sempre continuado.
O homem arrependo-me
da criação de Deus,
mas agora é tarde.
ANDRADE, Carlos Drummond de. A paixão medida. Rio de
Janeiro: José Olympio, 1980. p.86-88
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