Voltaire (1694-1778)
"não desejaria ser feliz sob a condição de ser imbecil"
Durante as minhas viagens
encontrei um velho brâmane – homem muito sábio, cheio de espírito e erudição;
além do mais, era rico, e portanto mais sábio ainda, já que, como não lhe
faltava nada, não precisava enganar ninguém. Sua casa era otimamente governada
por três lindas mulheres que faziam de tudo para agradá-lo; e quando não se
divertia com elas, sua ocupação era filosofar.
Perto de sua moradia, que era
bonita, bem decorada e cercada de encantadores jardins, morava uma velha hindu,
muito devota, imbecil e extremamente pobre.
– Quem me dera não
ter nascido! – disse-me um dia o brâmane. Perguntei-lhe por quê. – Faz quarenta
anos que eu estudo – respondeu-me –, e foram quarenta anos perdidos: ensino os
outros, e ignoro tudo; esse estado me enche a alma de tanta humilhação e
desgosto que faz com que minha vida seja insuportável. Nasci, vivo no tempo, e
não sei o que é o tempo; encontro-me num ponto no meio das duas eternidades,
como dizem os nossos sábios, e não tenho a mínima idéia do que seja a eternidade.
Sou feito de matéria, penso, e nunca pude saber o que é que produz o
pensamento; ignoro se o meu entendimento é em mim uma simples faculdade, como a
de caminhar, de digerir, e se penso com a minha cabeça como seguro com as
minhas mãos. Não apenas o princípio de meu pensamento me é desconhecido, mas
também o princípio dos meus movimentos: não sei por que existo. Não obstante,
cada dia me fazem perguntas sobre todos esses pontos; é preciso responder; nada
tenho que preste para lhes comunicar; falo bastante, e fico confuso e
envergonhado de mim mesmo depois de haver falado. O pior é quando me perguntam
se Brama foi produzido por Vixnu, ou se ambos são eternos. Deus é testemunha de
que nada sei a respeito, o que bem se vê pelas minhas respostas. “Ah! Meu reverendo”,
implorou-me, “dizei-me como é que o mal inunda toda a Terra.” Sinto-me nas
mesmas dificuldades que aqueles que me fazem tal pergunta: digo-lhes algumas
vezes que tudo vai o melhor possível; mas aqueles que foram arruinados ou
mutilados na guerra não acreditam nisso, nem eu tampouco; retiro-me abatido
pela curiosidade e pela minha ignorância. Vou consultar meus companheiros:
respondem-me alguns que o essencial é gozar a vida e zombar dos homens; outros
acreditam saber alguma coisa, e perdem-se em divagações; tudo contribui para
aumentar o doloroso sentimento que me domina. Às vezes me sinto à beira do
desespero, não sei nem de onde venho nem para onde vou nem no que me
transformarei.
O estado desse
excelente homem me causou verdadeira compaixão: ninguém tinha mais senso e
boa-fé. Compreendi que, quanto mais luzes havia no seu entendimento e mais
sensibilidade no seu coração, mais infeliz era ele.
Vi no mesmo dia a
velha sua vizinha: perguntei-lhe se alguma vez havia ficado aflita por querer
saber como era a sua alma. Ela nem entendeu a minha pergunta: jamais em sua
vida refletira um instante sobre um só dos pontos que atormentavam o brâmane;
acreditava de todo o coração nas metamorfoses de Vixnu e, desde que algumas
vezes pudesse conseguir água do Ganges para se lavar, considerava-se a mais
feliz das mulheres.
Impressionado com
a felicidade daquela criatura, voltei ao meu filósofo e lhe disse:
– Não te
envergonhes de ser infeliz, quando mora à tua porta um velho autômato que não
pensa em nada e vive feliz?
– Tens razão –
respondeu-me ele. – Mil vezes eu disse a mim mesmo que seria feliz se não fosse
tão tolo como a minha vizinha, contudo não desejaria tal felicidade.
Essa resposta me
impressionou mais que todo o resto; consultei minha consciência e vi que na
verdade também não desejaria ser feliz sob a condição de ser imbecil.
Apresentei a
questão a filósofos, e eles concordaram com a minha opinião. “Contudo”, dizia
eu, “existe uma terrível contradição nessa maneira de pensar”. Pois de que se
trata, afinal? De ser feliz. Que importa, então, ter espírito ou ser tolo? Mais
ainda: aqueles que estão contentes consigo mesmos estão bem certos de estar
contentes; mas aqueles que raciocinam não têm tanta certeza de raciocinar bem.
“É claro”, dizia eu, “que se deveria preferir não ter senso comum, desde que
este contribua, o mínimo que seja, para o nosso mal-estar.” Todos concordaram
comigo, porém não encontrei ninguém que aceitasse se tornar imbecil para se
sentir contente. Daí concluí que, se damos muito valor à felicidade, damos mais
ainda à razão.
Contudo, pensando
bem, parece uma insensatez preferir a razão à felicidade. Como explicar, então,
tal contradição? E também todas as outras. Há muito a discutir a respeito
disso.
VOLTAIRE. Contos.
São Paulo: Editora Nova Cultural, 2002. p. 235-239
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