segunda-feira, 30 de setembro de 2013

O ROMANCE DE AUTORIA FEMININA NO ACRE: historicidade e regionalismo

Margarete Edul Prado de Souza Lopes


Minha preocupação nesse artigo é enfocar os problemas, os temas e as metáforas referentes à mulher presentes nas narrativas de Florentina e Francisca Trindade Lopes. O artigo focaliza a mulher e suas condições de existência na Amazônia, com atenção específica voltada ao romance, que, segundo Edward Said, é artefato cultural da sociedade burguesa e também é entre todas as principais formas literárias, a mais recente. O seu surgimento é o mais datável, sua ocorrência, a mais ocidental, seu modelo normativo de autoridade social, o mais estruturado. Além disso, o romance é uma forma cultural incorporadora, de tipo enciclopédico. Dentro dele, se encontram tanto um mecanismo altamente preciso de enredo quanto um sistema inteiro de referências sociais que depende das instituições existentes da sociedade burguesa, de sua autoridade e poder. Sendo assim, o romance acreano de autoria feminina se revela um excelente instrumento de estudos de mulheres atuantes e determinadas, em que aparece de maneira marcante a mulher indígena.

A Amazônia foi palco da contemplação pura e simples dos primeiros cronistas e estudiosos, que se deslumbraram diante dos cenários diferentes e desconhecidos, deleitando platéias curiosas e sôfregas por histórias novas. A imagem construída sobre a região, nos séculos XVI a XVIII, é de uma natureza maravilhosa e mítica, terra do fabuloso e das fantasias. No século XX, surgem vários romances descrevendo uma Amazônia exótica e luxuriante tais como: A Amazônia misteriosa (1925), de Gastão Cruls; Terra de Icamiaba (1932), de Abguar Bastos; Seiva (1938), de Osvaldo Ourico, entre outros. Apesar da força dos mitos e após o deslumbramento inicial diante da nova paisagem durante os primeiros séculos, a partir do século XIX pode-se notar um movimento contrário nos relatos e depoimentos sobre a Amazônia. Surge a necessidade de entender, explicar, explorar e dominar a região.

O Acre, que ainda não pertencia ao Brasil na época dos primeiros viajantes, não foi contemplado com relatos deslumbrados dos viajantes diante da nova terra, mas tem sido descrito, desde os primeiros romances, como um lugar do homem branco em conflito permanente com a terra, com os índios, com os estrangeiros (portugueses, bolivianos, americanos, ingleses). Retrata-se o ser humano lutando para sobreviver na floresta, nas mais miseráveis e rígidas condições de vida, uma vida sempre por um fio, em terreno hostil e inócuo, habitado por animais nocivos e de condições climáticas extremas. Pode-se ler o seguinte trecho no romance A Selva, de Ferreira de Castro:

Era outro o meio, outra a terra e outros os seres. Nada se criara ali para o comprazer, nada lhe falava das pessoas com quem convivera, dos seus antigos costumes, das coisas que amara. Era um mundo à parte, terra embrionária, geradora de assombros e tirânica, tirânica ! ... Existia o emaranhado vegetal, louco, desorientado, voraz, com alma e garras de fera esfomeada [...] porque ali somente a selva tinha vontade e imperava despoticamente.

Nas narrativas que reconstroem os fatos históricos da região, destacam-se Guerra dos Seringueiros, de Jesuíno Ramos e Território de bravos, de Francisco Marins. Embora os dois autores não sejam acreanos, relatam, na forma de ficção, a história detalhada da Revolução chefiada por Plácido de Castro, que resultou na anexação ao Acre ao Brasil. Em relação aos autores acreanos, nas Memórias de um padre seringueiro, de Expedito de Castro, bem como em Ô de Casa, de Francisca Trindade Lopes, os personagens principais se movimentam em meio aos acontecimentos violentos da Revolução Acreana, que serve de pano de fundo. Memórias de um seringueiro, de Jersey de Brito Nunes, conta a história da origem e formação da cidade de Sena Madureira, enquanto O trabalho vence tudo Luta contra os astros, ambos de José Higino de Souza Filho, resgatam e documentam o cotidiano e costumes dos habitantes de Vila Sobral (hoje Tarauacá), nas primeiras décadas do século XX. Quanto à autoria feminina, são três os romances de mulheres no Acre: Terra de Deus (1993), de Luciana Barbosa; O empate (1993), de Florentina Esteves e Ô de casa (2003), de Francisca Trindade Lopes.[2]

Francisca Trindade Lopes escreveu Ô de casa ao longo dos anos, nos intervalos entre uma atividade e outra, em casa ou no ambiente de trabalho. A escrita do romance foi concluída em 2002, mas chegou ao público em 2003, pois a escritora somente obteve recursos para publicá-lo após a venda da própria casa. Foi com parte do dinheiro da venda do imóvel, no qual residia, que ela conseguiu disponibilizar o romance para os leitores[3]. A escritora, além de romancista, também é contista e cronista, mesmo que seus escritos nesses últimos gêneros, ainda não tenham sido publicados.

O romance de Francisca Lopes se inicia na cidade, quando um homem que está há muito tempo sumido e dado como morto, reaparece no portão da casa da protagonista chamando: “Ô de casa!”. Imediatamente se inicia um flash-back para contar a história dos dois personagens que se apaixonaram no passado: Luísa e Dêro. Ela com apenas dezesseis anos, ele bem mais velho, nas terras designadas para os seringueiros trabalharem depois que foram expulsos pelos fazendeiros de gado. O relato contém todos os detalhes de como o casal se conheceu e foi se apaixonando devagar. Ela, sempre de gênio forte e voluntariosa e ele, um homem calmo e de atitudes sensatas. Quando eles estão de casamento marcado e ela acaba de entregar-lhe a virgindade na véspera, ele sofre uma emboscada e chegam as notícias de que foi assassinado.

Tem início então outro flash back, para os tempos em que o Acre foi anexado ao Brasil, os tempos de Plácido de Castro, gaúcho que liderou a revolução que tomou o Acre da Bolívia. Esse novo relato conta a história de um ascendente do protagonista, Artur, o avô de Dêro, que foi um dos heróis da Revolução Acreana. Mais da metade do romance é tomada por esse relato histórico (da página 57 até 190) e se encerra com ele. As duas primeiras narrativas ficam abandonadas e inacabadas, sem nenhum desfecho. Sobre o romance Ô de casa, Fátima Almeida fez a seguinte crítica:

Li Francisca Lopes. Acho que tem potencial, de vir a ser o Jorge Amado do Acre, tem uma narrativa ótima, a gente entra na história, ela denota conhecimento com a realidade do seringal antigo, coisa que não existe de modo algum em Florentina Esteves.  Mas comentou um erro atroz ao inserir um capítulo inteiro de Leandro Tocantins, misturando ficção com história científica, não tem nada a ver, ela mesma condenou o próprio livro.[4]

No entanto, sobre a terceira história, há muitos aspectos relevantes a serem discutidos. Artur, ao contrário da maioria de nordestinos que vieram trabalhar nos seringais, sabia ler e escrever: “Artur escreveu para seus pais e para Rosinha, a primeira carta depois que chegara ao seringal” (LOPES, 2003: 92). Também, os registros da fala de Artur são baseados na norma culta. Entretanto, a característica mais importante do livro de Francisca Trindade Lopes é a criação de uma personagem indígena. Os personagens índios são raros nos romances do e sobre o Acre, de inscrição masculina. O primeiro romance amazônico, Simá, publicado em 1857, de Lourenço da Silva Araújo Amazonas, embora seja declaradamente indianista, retrata um drama que se limita a um destino de submissão à colonização portuguesa. A importância do livro reside em ser a primeira tentativa de registrar a condição de vida na Amazônia, em definir as relações entre índios e brancos, recriando a atmosfera da região ainda em confronto aberto com os conquistadores:

A relação entre brancos e indígenas, a força do clero, as disputas políticas estão colocadas como pano de fundo atrelado a uma intensa descrição da paisagem e à preocupação com a construção do perfil do homem amazônida, fruto da miscigenação. A natureza é caracterizada como uma dádiva divina, metáfora do Éden. Como motivo principal da narrativa, temos a trajetória da heroína, Simá, sua vida, amizades, amores, destino, tragédia. Uma heroína romântica da Amazônia, com fim trágico. (FIDELIS, 1998: 40)

O Brasil não tem uma tradição de literatura indianista muito forte, mas Simá comparece como um romance precursor dos escritos de José de Alencar. Todavia, tal como o escritor cearense, Lourenço Araújo propõe uma visão otimista do encontro entre as duas culturas, a branca e a indígena, ainda que antevendo os pesadelos internos. Também como Iracema (1965), a heroína indígena Simá morre de forma trágica ao final da história, numa alusão de impossibilidade da cultura aborígine sobreviver à colonização portuguesa.[5] No entanto, é bastante significativo que a primeira personagem de ficção da Amazônia seja uma jovem índia e não um elemento branco.

Um dos primeiros romances sobre o Acre também valoriza e descreve a cultura autóctone:Ressuscitados, de Raimundo Morais, publicado na década de trinta. Seguindo em linha contrária a ideologia dos livros de José de Alencar e Lourenço Araújo, Raimundo Morais descreve uma jovem índia ipurinã,[6] Corina, que não morre ao final da narrativa, mas mata a sangue frio seu ex-marido branco, porque ele matou seu amante índio. Após o sinistro, ela vai embora para o coração da floresta viva e vitoriosa.

Os miolos escorreram. A cara se lhe transformou numa posta sangrenta. Corina vibrou-lhe ainda outro golpe, pisou-lhe o rosto, cuspiu-lhe, apostrofou-o, estava horrivelmente sinistra. Era agora uma das próprias Fúrias, uma das Gorgonas, tentando talvez metamorfosear em pedra a carne daquele maldito que lhe matara o amante. Delirava em torno dos despojos de José Alves. Ia e vinha olhando-o furiosa, à espera sem dúvida que lhe acudisse à lembrança algum suplício que fizesse urrar de dor o morto. Dando, todavia, com o Cauré estendido no chão, foi outra vez para ele, mudando-se de novo na imagem duma soros Pudibunda. Suas mãos piedosas acariciavam a cabeça ensangüentada do amante. Nisto chamou Japiim, tal se lhe houvesse ocorrido alguma idéia. Convidou o irmão a carregar o corpo, e, como se levasse ali o seu grande tesouro, os seus anelos e a própria alma, desapareceu na floresta. Nunca mais ninguém soube dela. (MORAIS, s/d: 318)

A narrativa transcorre nos tempos em que o Acre ainda pertencia à Bolívia, em fins do século XIX, no local onde hoje se localiza a cidade de Sena Madureira. José Alves Ferreira, cearense, rude e de pouca instrução, só havia cursado o primário, tinha trinta anos quando os índios canamarí deixaram Corina em seu seringal e ela foi “adotada” por ele:

O capitão Ferreira desceu curioso até junto das embarcações. De uma delas, embrulhada em trapos e metida num panaçu, o tucháua tirou a criança. Mal abria os olhos de recém-nascida. Trazia dois dedinhos da boca, José Alves pegou a criança e chamou, gritando, pela mãe Genoveva, que recebeu e levou no colo a cunhantain (MORAIS: 13). 

José Alves faz da indiazinha ipurinã sua protegida e quando ela alcança a idade de oito anos, envia a menina para ser educada em colégio de freiras, em Belém: “Educou-se com as freiras. Sabe de um tudo. Borda, pinta, fala inglês, francês, espanhol, italiano, latim. Ela entra com a sabedoria e ele com o dinheiro. Bonita pra doer” (MORAIS: 150). Após a passagem de mais oito anos, José Alves vai buscá-la, mas como nunca teve olhos de pai com a protegida, pretende casar-se com ela. Sua viagem até Belém é descrita em vários capítulos, mostrando as extravagâncias e gastos do seringalista em Manaus e a visita ao famoso bordel de francesas, a Pensão Florou. Dono de oito mil contos de réis, José Alves compra diamantes, peles e roupas finas para presentear Corina.

Márcio Souza assinala as discrepâncias nas atitudes de um coronel da borracha: ele era o cavalheiro urbano em Manaus e o patriarca feudal nos seringais. O outro lado, o lado terrível, do isolamento e do regime de semi-escravidão dos seringueiros, das estradas secretas, ficava bem protegido, escondido no infinito emaranhado de rios, longe das capitais. Ele ainda ressalva a importância de se tomar conhecimento dos exageros de consumo dos "coronéis de barranco", que bebiam do melhor uísque importado da Europa, sendo que algumas famílias tinham a extravagância de mandar a lavar a roupa em Lisboa. Contudo, essa opulência teve seus dias contados (cf. SOUZA, 1977: 100-105).

O romance descreve a parvoíce e ignorância dos seringalistas enriquecidos pela borracha, que são explorados nas grandes cidades por comerciantes inescrupulosos. O termo “Ressuscitados” nomeia aqueles que ficaram enterrados durante anos no trabalho extrativista e, é como se renascessem para o mundo, quando reaparecem nas cidades de Manaus ou Belém, ricos e atrapalhados, sem saber como se comportar na civilização, sem nenhum traquejo para a vida em sociedade. José Alves, no caso, está saindo do Seringal Santa Clara, para buscar Corina, depois de 36 anos internado na floresta:

No mesmo dia em que José Alves Ferreira Chegava a Belém, espalhara-se a noticia, através, aliás, de cem versões, algumas fabulosas, outras reais, todas, porém, como sentido justo duma existência que se afundara na planície, já lá iam 36 anos, pobre e desvalida, para ressurgir rica e prestigiada. A imprensa toda, depois, explorando o caso, aludia ao seringueiro. Certo matutino – A Província do Pará – sob o título de Um Ressuscitado, comentava a vida de José Alvez, vida rude na mata (MORAIS: 143).

A índia Iracema, de Alencar e Simá, de Lourenço Araújo sucumbem diante da dominação portuguesa, contudo, Corina personifica a resistência da raça. Do mesmo modo, a personagem Iana, do romance Ô de Casa, de Francisca Trindade Lopes. Iana é uma índia de cerca de dezessete anos, sobrevivente ao massacre de sua tribo:

Quando ela chegou aqui, fugia muito e ficava de três dias sem aparecer. Achávamos que ia procurar sua gente. Como não encontrava nem vestígio deles, uma vez que, com sacrifício até de vidas, conseguimos expulsa-los para bem longe, ela retornava, mas só aparecia à noite para roubar comida, quando era pega e castigada para não fugir mais (LOPES: 88).

Iana trabalha como babá do filho do patrão, dono do seringal. Quando Artur chega do Ceará, aos 23 anos, para trabalhar no corte de seringa, ela é designada para ser companheira dele: “Seu ajuntamento com Iana aconteceu arranjado pelo patrão e quando ficou sabendo que uma mulher índia ia ser sua companheira, quis recusar” (LOPES: 135). De início, Artur demonstra preconceito em seu relacionamento com Iana. Ele deixou os pais e uma namorada, Rosinha, esperando por ele, no Ceará. Ele decide ficar com a índia somente por uns dois anos, para preencher a solidão na selva e depois voltar para sua terra. Mas logo, Iana tem um filho de Artur. Durante a gestação, os companheiros de luta festejaram: “Eh, brabo! Adeus, Ceará. Você vai mesmo é ficar por aqui...” (LOPES: 119). Os preconceitos de Artur vão desaparecendo paulatinamente e ele começa a ver vantagens da união com a índia que não aconteceria com uma esposa branca. Sua namorada, Rosinha, no Ceará, não permitia nada além de rápidos e leves beijos, enquanto na floresta, a índia está sempre disponível para o sexo.

Ter uma mulher índia como companheira foi a melhor coisa que aconteceu comigo depois que saí de casa. Ela sabe viver e trabalhar na mata! E se não fosse ela, estava, como a maioria dos companheiros, trabalhando sozinho, enfrentando, além dos perigos de viver no meio do mato, uma grande solidão, o que não estava acontecendo com ele graças à índia. E o que era melhor, Iana era uma mulher que não se fazia de rogada. Fosse nos caminhos das estradas de seringa, fosse na beira do igarapé ou mesmo noutro lugar, estava sempre disposta para uma sem-vergonhice. Mas isso ele não ia contar aos pais; estava longe, mas não estava doido. Imagina contar essas coisas para o velho, nem que o padim pade Ciço pedisse” (LOPES: 135).

No mundo dos índios não existe os interditos e vetos que a sociedade ocidental impôs sobre as mulheres desde os tempos da Modernidade. A índia desfrutava de um comportamento mais livre que uma mulher da cidade jamais teria naqueles tempos. Em seguida, Artur é convocado pelo patrão, com mais meia dúzia de seringueiros, para lutar sob o comando de Plácido de Castro, na Revolução Acreana, em que os brasileiros tomaram o Acre da Bolívia. Meses depois, ao retornar da batalha, Iana já tinha tido outro filho e também aprendera a ler e escrever e já dominava um vocabulário maior do que tinha antes. Por ter participado da guerra, Artur teve sua dívida com o patrão perdoada[7] e no final do ano de 1905, já com três filhos, foi ao Ceará rever os pais e irmãos. Mas ao final do romance, Artur se estabelece de vez no Acre, sempre com Iana com a qual teve um total de oito filhos. De forma semelhante à Corina, a índia Iana sobrevive e se encaixa na sociedade dos brancos, porque assimila e aceita a cultura do Outro.

No romance O empate, Florentina Esteves discute a polêmica questão das queimadas e do desmatamento na região do Acre, os conflitos entre fazendeiros e seringueiros. O termo "empate" tem origem no verbo "empatar" e foi empregado na região acreana com o sentido de impedir alguém de realizar ato danoso contra a natureza ou um determinado grupo. Para enfrentar a força desagregadora dos criadores de gado, que tentavam desarticular o antigo extrativismo vegetal da borracha e da castanha, tradicional na região, implantando fazendas nas terras de seringais, os seringueiros se utilizavam do “empate”. Homens, mulheres e crianças se posicionavam de mãos dadas, na frente das armas, de motosserras e dos peões que trabalhavam para os fazendeiros e madeireiros para impedir a invasão de suas terras e a derrubada da floresta. Se necessário, ficavam horas na mesma posição ou até o dia inteiro. Esta atitude de resistência foi chamada de "empate".

Os primeiros empates foram organizados pelos seringueiros como forma de se contrapor aos fazendeiros, que queriam expulsá-los de suas Colocações de Seringa, ou para impedir que derrubassem as florestas para formar pastos para os bois. [...] Em um empate, a polícia sempre se apresentava ao local para proteger os patrimônios dos grandes proprietários e para fazer cumprir as ordens judiciais. Os seringueiros enfrentaram, em seus empates, ordens judiciais e violências policiais. (SOUZA, 2002: 55-56)

O herói da narrativa é Severino Sobral, que mora com o filho, Firmino. Pai e filho vivem no tempo da liderança de Chico Mendes, no Sindicato dos Trabalhadores Rurais de Xapuri, com o mercado da borracha decadente e a chegada de homens e máquinas de São Paulo e outros estados do sul, para desmatar a floresta para feitura de pastos para a criação de gado. Esse tempo de transição de uma economia para outra é bem registrado no romance com os empates feitos pelos últimos seringueiros, liderados por Firmino.

Na primeira parte do livro, a narrativa se detém na solidão de Severino, vivendo isolado na mata, no corte da seringa, com visitas esporádicas do amigo Celestino. O amigo, que era casado, dizia-lhe sempre para arranjar uma mulher, pois a cachorra Lindalva, que lhe servia de companhia, de mulher só tinha o nome.

- Pois então me diga onde é que tem mulher.
- Ter, não tem nem bagulho. Você já viu a Chiquinha do finado Idroaldo? Aquilo é que é ser canhão: vesga, manca, corcunda, e, além de tudo, preta que nem tição. Pois ainda no velório, Simplício e seu Zé-dos-Bodes armaram tal fuzuê que um foi pra casa sangrando, e o outro levou a mulher, antes mesmo do defunto feder. Mas se tu tem coragem, faz como o finado Cosme: um dia que Gumercindo viajou a Xapuri, ele foi no seu barraco, agarrou a mulher, levou à força. E inda deixou recado: se vier buscar, leva bala. Só que ele não contava cruzar com Gumercindo, no meio do caminho. Foi bala, seu Severino. E do pobre do Cosme as piranhas deixaram só o esqueleto (ESTEVES, 1993: 07).

Aqui a manifestação de relações de raça e de gênero está em questão. A mulher disputada pelos seringueiros no velório é negra. A presença do elemento negro é ainda mais rara que a do indígena no romance acreano. Além de praticamente não existir escritores negros, os representados nas narrativas são personagens sempre subalternas, a serviço de um seringalista rico e explorador. É o caso do capataz e comboieiro negro Tomaz, que trabalhava para o Coronel Tonico Monteiro, em Terra Caída, de Jose Potyguara. Outra personagem negra é a mãe Genoveva, cozinheira de José Alves, dono do seringal Santa Clara, em Ressuscitados, de Raimundo Morais. Ela é uma nordestina responsável pela criação e educação de Corina até os oito anos de idade, quando então lhe contava histórias do imaginário popular nortista e ensinava as cantigas e os mitos locais. Ao final da narrativa, quando José Alves está se preparando para atacar a aldeia de Corina, com um regimento de seringueiros armados, mãe Genoveva pede as contas e volta para Belém, alegando ao patrão que prefere ir embora para não ter que ver a morte de “sua rica e bela menina”.

Severino, após beber em excesso no baile, fica bem doente e viaja com Celestino para tomar os remédios da índia Jandira. Nessa ocasião, Severino conhece Mani e, no mesmo dia, volta com ela para sua barraca para ser sua companheira: “Severino sentiu que Mani era parte de seu ser, de que também faziam parte a terra, rio, árvores, pássaros e o ar que respirava” (ESTEVES: 16). No decorrer da narrativa, sobressai aos olhos do leitor a história de amor do seringueiro Severino Sobral e sua companheira Mani, índia da tribo dos Ianomâmis, uma vez que a mulher branca contava em quantidade insuficiente para todos os seringueiros. Ele e Mani (homem branco e índia) formam um casal de amantes perfeitos, vinculados entre si e com a mata. O trecho abaixo demonstra a força da ligação entre Severino e Mani, que, após o nascimento de cada filho, plantavam uma árvore em homenagem à criança:

Mandaram logo recado a Jandira. Mas como a índia não chegou a tempo, ele mesmo serviu de parteira. Serviu de parteira também quando nasceu Iraci, depois Jaci, Conceição, Maria Rita, Antônia, Agaildo, Aquino. Jandira só precisou vir na vez do temporão: Firmino. Aí ele levou-a ao terreiro, ‘vem ver os irmãos dos meninos’. Enfileirados, mostrou-lhe que depois da sapupema vinha a ingazeira, o cedro, copaíba, pau-d’arco, mulateiro, o sapoti e a tamarineira. Pouco adiante, atravessando a trepadeira do portão do barraco, estava o pé de cumaru-ferro: este é o irmão de Firmino (ESTEVES: 20).

Quando nasceu Nino, o primeiro, plantaram uma Sapupema. Jandira, mãe de Mani, era parteira e ajudava nos partos, pois, na floresta, os médicos aparecem esporadicamente. O próprio marido passa a fazer os partos de sua esposa, voltando a pedir ajuda da sogra no último e nono filho. Assim, o quintal floresce farto de árvores, cada uma plantada de acordo com o desejo que Mani teve na gravidez e com a característica que seria marcante no filho que nascia.

Todos esses elementos servem para revelar ao leitor como seria difícil, impossível para um homem como Severino deixar suas terras, plantações e moradia para viver na cidade, só porque a terra agora pertencia a fazendeiros. Mani adoece e acaba por falecer depois que os filhos estão adultos. Ela começa a entristecer com a morte de Agaildo, o filho que decide ajudar nos empates depois de se casar e constituir família. Ele morre durante um dos empates de emboscada, esfaqueado por um peão, deixando a esposa grávida do primeiro filho. Mais tarde, Nonato, o marido de Toinha, filha de Severino e Mani, mata um peão que mexera com sua esposa. Nonato foge e desaparece depois do crime. Severino leva Toinha e os netos para sua casa (barraco). Quando ela resolve voltar para sua colocação, toma conhecimento que os “paulistas” queimaram tudo e já se apropriaram das terras. Ela deixa as filhas menores com os avós e decide morar na cidade com o filho mais velho. Certa ocasião, em que Severino vai visitá-la, descobre desgostoso que a filha vive na prostituição.

Após tais acontecimentos, a saúde de Mani piora levando-a a morte. Ela não teria como sobreviver, mesmo sendo a representação da natureza dentro da narrativa. Ela, mulher indígena conhecia todos os remédios feitos com as ervas da floresta, conhecimento ancestral que foi passado de mãe para a filha. Ela que conhecia os mistérios e os segredos da mata, morre, uma alegoria de que os criadores quando destruiam e queimavam as árvores indiscriminadamente para a criação de pastos, matavam também as tradições, a sabedoria do povo da floresta, seus costumes e meios de vida. O massacre ambiental equivaleria a um massacre cultural.

Mary Louise Pratt, em seus estudos sobre o amor transracial, em relatos de viajantes ingleses, de 1750 a 1800, observa que os enredos desse tipo de amor articulam o ideal de harmonia cultural através do relacionamento amoroso. O que faz deste ideal um ideal é, mais de uma vez, a mística da reciprocidade. “Enquanto ideologia, o amor romântico, como o comércio capitalista, se vê como recíproco. Reciprocidade, o amor retribuído entre indivíduos igualmente valiosos um para o outro, é seu estado ideal” (PRATT, 1999: 174). O drama ou escândalo acontece quando fracassa a reciprocidade ou a equivalência entre as partes.

A crítica assinala também que por mais que os amantes desafiem as hierarquias coloniais, no final eles obedecem a elas. A reciprocidade se torna irrelevante. Assim, seja ou não correspondido o amor, seja o amante colonizado homem ou mulher, o resultado parece ser aproximadamente o mesmo: os amantes são separados, o europeu é reabsorvido pela Europa e o não-europeu morre prematuramente (cf. op. cit.: 175). Pratt se refere em suas análises ao amor transracial entre negros (na maioria das vezes crioulos, mestiços) e brancos, entre o colonizado e o colonizador, entre o europeu e o não-europeu, como, por exemplo, na Narrativa de uma expedição de cinco anos contra os negros revoltosos de Suriname, de John Stedman, a qual conquistou imaginações por toda a Europa durante trinta anos, após sua publicação em 1796. Ainda assim, é possível aplicar suas palavras a romances como Iracema, de Alencar e Simá, de Lourenço Araújo, nos quais os amantes são separados no final e o elemento europeu é “reabsorvido pela Europa e o não-europeu morre prematuramente”.

Se as índias Iracema e Simá morrem nas narrativas românticas do século XIX, ainda refletindo a ideologia de relatos como os de Stedman, o mesmo não acontece em relação à produção ficcional da Amazônia, tematizando o amor transracial, principalmente, nas narrativas de autoria feminina do Acre. As diferenças estão nas relações que agora são entre homens e mulheres do Brasil, mas de raças diferentes: indígena e branca. Os amantes ainda pertencem a espaços geográficos distantes e diferentes: o homem é sempre nordestino, que veio de fora para viver no Acre, as mulheres são indígenas.

É necessário apontar também que o amor transracial se realiza e tem permanência porque um dos amantes se fixa no espaço do outro. Aqui são os homens que permaneceram na Amazônia. Em Ô de Casa, de Francisca Lopes, inicialmente Artur tem planos de voltar para o Ceará e se casar com Rosinha, depois que juntar dinheiro suficiente produzindo borracha. Porém, após o nascimento de seu primeiro filho com Iana, ele começa a mudar de atitude. O amor entre eles floresce e tem longa duração porque ele resolve se fixar no Acre. Quando ele visita seus pais, no Ceará, depois de lutar na Revolução Acreana, deve-se notar que ele não leva Iana com ele, apenas o filho mais velho. Nas palavras de Pratt, “os vínculos amorosos se desenrolam em algum espaço marginal ou privilegiado onde as relações de trabalho e propriedade estão suspensas” (PRATT: 178). Da mesma forma, acontece entre Severino e Mani. O idílio é perfeito porque o casal vive nas entranhas da floresta, no ambiente dela.

O elemento indígena sobrevive ao branco segundo duas condições: aniquilar o branco ou assimilar e aceitar sua cultura, sufocando a sua própria. No caso do romance Ressuscitado, Corina mata José Alves porque na verdade ela nunca teve nenhum amor por ele, senão talvez filial. Também ela era uma moça fina e culta, que dominava a cultura ocidental muito melhor do que ele. Ela recebeu uma educação formal completa, ele mal fizera o curso primário. Já no amor de Artur e Iana, ela aceita a transculturação, ela assimila o mundo do branco. Mani também é brilhante e atuante porque nunca é retirada de seu mundo da floresta, o qual ela domina totalmente. Quando esse mundo é ameaçado pelas máquinas dos “paulistas”, pelo desmatamento e desapropriação, ela morre de desgosto.


Referências Bibliográficas:
CUNHA, Euclides da. (2000). O paraíso perdido. Seleção e coordenação de Hildon Rocha. Brasília: Senado Federal.
ESTEVES, Florentina. (1993). O empate. Rio de Janeiro: Oficina do Livro.
FIDELIS, Ana C e Silva. (1998). Entre orientes, viagens e memória: a narrativa Relato de um certo Oriente, de Milton Hatoun. Dissertação de Mestrado. Campinas: UNICAMP.
LOPES, Francisca Trindade. (2003) Ô de casa! Rio Branco: Printac.
MORAIS, Raimundo. [s.d]. Ressuscitados: romance do Purus. São Paulo: Melhoramentos.
POTYGUARA, José. (1998). Terra caída. 3.ed. Rio Branco: Fundação Cultural do Estado do Acre. (1ª edição de 1961).
PRATT, Mary Louise (1999). Os olhos do império: relatos de viagem e transculturação. Bauru, EDUSC.
SAID, Edward. (1990). Orientalismo: o oriente como invenção do ocidente. São Paulo: CIA das Letras.
SOUZA, Carlos Alberto Alves de. (2002). História do Acre: novos temas, nova abordagem. Rio Branco: Editor Carlos Alberto A. de Souza.
SOUZA, Márcio. (1977). A expressão amazonense do colonialismo ao neocolonialismo. São Paulo: Alfa-Ômega.
SOUZA, Márcio. (1994). Breve história da Amazônia. São Paulo: Marco Zero.



[1] LEITE, José Chalub. Tão Acre: o humor acreano de todos os tempos. Rio Branco: Editora Preview, 2000, p. 112.
[2] Nasceu em 1939, no seringal Estirão, em Tarauacá. Posteriormente, a família mudou-se para o seringal Ariópolis, também em Tarauacá. Foi registrada na antiga comarca de Feijó. É a sétima de um total de dez filhos de Francisco Lopes de Lima e Raimunda Trindade Lima. Formada em História, pela UFAC, em 1984, atualmente está aposentada de suas funções como funcionária da Companhia de Luz, no Acre (Eletroacre). Solteira, sem filhos, mora em um apartamento no bairro Bosque, em Rio Branco.
[3] LOPES, Francisca. Entrevista [09 de fevereiro de 2004] Rio Branco. Realizada por Alzenir Rabelo Mendes.
[4] ALMEIDA, Fátima. Entrevista. [08 de fevereiro de 2004]. Rio Branco. Realizada por Margarete Prado Lopes.
[5] Quando as caravelas de Cabral aportaram na costa brasileira, cinco milhões de índios habitavam o Brasil. Nos últimos 500 anos, porém, mais de mil línguas indígenas desapareceram junto com seus povos. Segundo estimativas da Funai, as 220 etnias que sobreviveram ao genocídio do homem branco somam hoje uma população de apenas 350 mil índios. No Acre sobrevivem 12 nações indígenas. VerRevista Outras Palavras. Rio Branco: Fundação Elias Mansour, junho de 2000, nº05, p.20.
[6] As nações indígenas que ainda sobrevivem no Acre são: Jaminawa, Manchineri, Kaxinawá, Kulina, Ashaninka, Shanenawa, Katukina, Yawanawá, Jaminawa-Arara, Nukini, Arara e poyanawa. Piauí e Rio Grande do norte são os únicos estados brasileiros onde não povos indígenas. Cerca de 60% da população atual vive no Centro Oeste e Norte do País e cerca de 12% do território nacional está reservado para uso dos povos indígenas. Outras Palavras, junho de 2000, p.23.
[7] No Sistema de Aviamento, que vigorava no extrativismo, o seringueiro já chegava aos seringais acreanos endividado, pois teria que pagar ao seringalista, produzindo borracha, as passagens do Nordeste até o Acre, além das roupas, mantimentos e instrumentos recebidos para cortar seringa.

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* Margarete Edul Prado de Souza Lopes é Doutora em Letras, Professora da Universidade Federal do Acre e Coordenadora do Núcleo de Estudos de Gênero na Amazônia (NEGA). Ocupa a cadeira de no 32 da Academia Acreana de Letras.

NOTA
Este artigo está disponibilizado in INVENTÁRIO (Revista dos Estudantes de Pós-Graduação em Letras da Universidade Federal da Bahia), de onde o retiramos.

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