José Augusto de Castro e Costa
Seu nome jamais fora cogitado, mesmo porque
não se sabia se a criança a nascer seria menino ou menina. Aliás não havia
certeza nem se tal nascimento viria a ocorrer. Muitos esperavam que não
acontecesse! Em Rio Branco, até torciam! Seria preocupante levar a efeito o
nascimento da criança, em razão das dificuldades para seu sustento, para sua
sobrevivência, e até mesmo dada a
excepcionalidade do acontecimento.
A mãe humilde, sem profissão definida e sem
residência própria, no alto de seus vinte e seis anos não conseguira ocultar
sua gravidez indesejada, mesmo depois de esgotados todos os meios
contraceptivos.
Com vistas a evitar o nascimento da criança
haviam-lhe providenciado a maior diversidade de infusões e chás químicos e
caseiros, classificados em toda a região amazônica, como poderosos estimulantes
dos emenagogos, tais como Chá de Estragão, Fura-Parede, Orégano,
Ruiva-dos-Tintureiros, Tomilho e Zimbro-Comum, adicionados a “coquetéis” de abacate verde com abacaxi e
maracujá verde. À noite, antes de adormecer, administravam-lhe infusões com
Alfazema, Arruda, Jaborandí, Louro, Urtiga-Branca e Vassourinha, entre outros.
A pobre mulher ingerira tudo isso durante os nove meses de gestação e mais uma
torturante faixa a sufocar-lhe o ventre e sobretudo o feto. Para o sintomático dilatamento
do ventre, a informação aos não muito chegados à família e aos ingênuos, era de que a moça estaria
acometida de um volumoso tumor.
– E o pai?
– Que pai???
O autor da façanha seria um garoto, na
efervescência dos seus treze anos, ainda desprovido da capacidade
ético-jurídico para que lhe fosse imputada qualquer responsabilidade.
Poucos dias antes do Natal a jovem viria dar
à luz um menino, às nove horas da manhã de um domingo, causando um tremendo
alvoroço,na rua Quintino Bocaiuva, tipo uma prestativa vizinha, carregando uma
bacia com água, escorregar num degrau da
alta escada e esbarrar em outras duas que subiam com toalhas e jarras com água
limpa. O aguaceiro banhou e assustou um gato que dormia sossegadamente ao pé da
escada pois, aturdido, em espetacular salto para trás fora cair sobre o fogão a
lenha que ardia em brasa, arremetendo-se rapidamente para o centro de umas
pessoas que especulavam o destino do recém-nascido, donde, apavorado com os
sobressaltados, projetara-se em direção à janela mais próxima, colidindo no
trajeto com um macaquinho guariba, que encontrava-se no ombro de outra vizinha
e, de passagem, trombando com um papagaio que a tudo assistia do parapeito, indo os três
precipitar-se no quintal.
Alheio a tudo a criança nascera naturalmente.
Vira-se, então, um menino perfeitamente saudável, robusto, sem a menor sequela
imaginada, em função do que sofrera a mãe. O ambiente era de alegria, apesar de
certa estupefação.
De súbito, a irmã primogênita da parturiente
lembrara-se de uma filha sua, residente em Manaus, casada, propícia a adotar
uma criança, e que o aspirava em virtude de comprovada esterilidade. Julgara
nada mais favorável que ela assumisse a criação daquele primo, seu sangue, como
filho seu, para dar-lhe amor, afeto e muito ensinamento.
Com a aprovação de todos, fizeram-se as
vontades dos demais! Enfim, Feliz Natal!
Mesmo não sendo de pais biológicos, o menino,
agora filho legítimo, crescera em estatura, ensinamento e filosofia de vida,
adquirindo experiências vivenciadas em várias comunidades em que seus pais
instalavam-se a trabalho. A primeira infância transcorrera-se no seio familiar
alternando-se, em seguida, para internato, pensões masculinas e repúblicas em
localidades distantes dos genitores, que
viviam em periódicas transferências.
Romanticamente o rapaz mantivera
relacionamentos fugazes, destacando-se apenas um de maior prolongamento, talvez
por razões circunstanciais, quando de sua fixidez residencial mais intensa, na
pequenina Rio Branco, onde os encantos namoráveis eram proporcionalmente
mínimos. Após um considerável tempo de idílio, porém, eis que sua família, por
motivos funcionais, fora transferida novamente para Manaus.
Passaram-se os anos e o nosso protagonista,
não obstante seu anseio por constituir uma família, continuava com
envolvimentos transitórios.
Anos depois, o rapaz experimentara a sensação
de haver encontrado a quem tanto procurara. Apresentado a uma linda criatura,
dispusera-se em levar a passeio aquela verdadeira musa inspiradora. Na verdade
ele já a conhecia, havia algum tempo, quando, do alto dos seus 20 anos. Em Rio
Branco observara algo de fascinante daquela então menina-moça, que, igual a uma
nuvem passageira, agora, surpreendentemente, retornaria aos seus olhos, como
uma nova escultura carnal.
Para um inesperado passeio, o jovem aguardara, por um instante, e eis que
surge aquela imagem de mulher linda, meiga, suave, enternecida, simpática,
risonha e... muito mais. Isso, além de
bela como um calmo bom sonho, com olhos brilhantes e
ligeiramente puxados, corpo vistoso, carne consistente – com formato de bela
escultura grega. Até hoje, quem tem a felicidade de desfrutar de seu
relacionamento, há por certo de sentir ter sido ela semelhante a própria
personagem, de primeira grandeza, nas inspirações de Victor Hugo a Rudyard
Kipling, igual a própria musa de Orestes Barbosa a Pixinguinha, ao lirismo de
Tom Jobim e Vinícius de Moraes, similar a criação poética de Olavo Bilac a Manuel
Bandeira, romântica como a do verdadeiro “ultimo desejo” de Noel Rosa! A moça surgira
como o mais sublime dos ideais, o amor
que ressuscita, a lágrima que
comove, o evangelho que aperfeiçoa, a mulher mulher, onde começa o céu.
Embevecido, inebriado, extasiado diante de
tal essência materializada, o jovem a conduzira ao fusca vermelho e acomodara-a no banco ao
seu lado.
O perfume adocicado no interior do fusca,
contribuíra para mais encantar aquele rapaz atônito e surpreso, diante o triunfo imortal
da beleza feminina.
Visitam, os dois, vários locais naquela tarde
tórrida, sob o escaldar da canícula causticante da cidade que a moça não
conhecia. O passeio em Manaus contudo,
constituíra-se em convite ao usufruto de um cenário bucólico, ao contato
direto com a flora, com a diversidade das cachoeiras, com a natureza enfim. Os
ingredientes de tal paisagem inspiravam qualquer ser vivo ao complemento e
consumação do prazer físico, perturbador como uma carícia carnal, quando
poderiam premer contra o peito de um, o
seio agitado da outra, ao amar o amor. Talvez não! O tal prazer físico seria
preterido por registros fotográficos para a posteridade (?), por contemplação à
própria natureza, por divagações... O jovem nada providenciara em relação ao
coração da moça, quando a natureza propriamente dita era ela. Protelando, seguira
ele, como que desdenhando as oportunidades surgidas, fato que vieram
transformar-se em desperdício. Ao final da tarde, ao sol poente, encerrara-se o
passeio e eis que, juntamente com o dia, também falece o futuro de um jovem
casal de amantes.
O rapaz devolvera a moça às suas acomodações
e despedira-se... sorriso pálido... disfarçando sua timidez, sem saber que
naquele instante iniciava-se uma punição a qual, para um possível reencontro
desse casal, haveria de ser cumprido um quarentenário do mais absoluto
desencontro.
A esperança em receber as fotografias daquele
agradável, ingênuo e inesquecível passeio, passara a fazer parte de uma incessante
expectativa na mente do jovem. No princípio deitava-se e levantava-se, adormecia
e despertava com o pensamento voltado para aquela moça, residente em outra
cidade e para aquele turismo por
recantos bucólicos, em inesquecível
convívio.
Os dias esvaneceram, os meses passaram... Fizera-se
necessário buscar notícias daquela
formosura original que dava vida a seus
anseios. E assim o fizera, porém sem sucesso! Agora os anos, também, foram
diluindo... apagando-se! Romperam-se as esperanças! Arderam-se as lembranças doces de um
afetuoso passado!
As cinzas pretéritas dissiparam-se e os
desacertos existidos, ocultaram-se no subsolo do leito do pântano perdido da
existência humana! Encontrava-se sentimentalmente só! Tão só que nem recordara
já haver vivido semelhante situação há quarenta anos!
Em Manaus, aonde passara a viver, o anúncio
do lançamento de um livro, sobre uma certa árvore genealógica, atraíra sua
atenção para duas amigas que ainda permaneciam residindo em sua cidade natal,
as quais estariam presentes ao evento, ocasião em que poderia revê-las após
muitos anos. Ao chegar ao recinto e apresentar os devidos cumprimentos, acomodara-se
para assistir ao desenrolar do acontecimento, em que incluía-se um DVD
relacionado à família homenageada. De súbito, uma das amigas servira-se de um
celular e, repentinamente, passara-lhe o telefone. O rapaz julgara relacionar-se
a algum outro conhecido comum. Porém, ao ouvir a voz de quem se tratava, tivera
uma sensação de engasgamento que o atordoara, literalmente.
Quarenta anos depois, a voz daquela por quem,
involuntariamente, fizera-se por esperar... agora, como um “big bang”, soava-lhe
estrondosa e ao mesmo tempo adocicada, como naquela tarde perdida no tempo e no
espaço, que o abastecera de sentimentos esperançosos, ao fazer-lhe acreditar na
veracidade das palavras de uma deusa. Conseguiu balbuciar em rápidos minutos:
– Até
hoje estou esperando aquelas nossas fotografias, testemunha fiel do nosso
encontro. Há quarenta anos espero falar a você meus sentimentos íntimos. A
senha para isso seriam aquelas fotos! A circunstância surpreendente que
instalou-se naquele nosso passeio, frustrou-me a qualquer manifestação além da
amizade. Aliás, nem agora está sendo propício para conversarmos. Passarei um
e-mail para você, sem falta! Beijos!
No dia seguinte, postado o e-mail, eis que instalara-se
uma terrível, inexplicável e decepcionante incomunicabilidade. Sem a esperada
resposta, o nosso protagonista absorvera a ausência da desejada comunicação com
inquietante e visível expectativa. Em contato com a amiga responsável pelo
surpreendente reencontro, fora informado de que seu e-mail havia sido recebido
pela destinatária, sim!
Então, talvez fora o caso de um novo sumiço,
em razão de desinteresse, de indisponibilidade ou até mesmo por declinação
motivado por um comprometimento. Deveria
haver algo a impedir!
Após quarenta anos aquela mesma ansiedade voltara
a apoderar-lhe a alma, abater-lhe o humor, embrutecer-lhe o convívio com tudo e
com todos. A busca pelos e-mails recebidos fizera-se uma preocupação constante.
Somente um e-mail o confortaria – este
não figurava em sua Caixa de Entrada... Passaram-se os minutos... Passaram-se as horas... Passaram-se
os dias! Pois o esperado e-mail não chegara, ainda! Então, decidira retomar os
planos anteriores, respirar novos ares. Partiria, de qualquer modo, para outra
cidade! Afinal, por achar-se na fase outonal da vida, ele procuraria
distanciar-se dos atuais envolvimentos e mudar as atitudes. Vida nova, ares
novos!
Ao final de um dia, já transcorrido quase um
mês, revira, como de hábito, os e-mails recebidos e... lá depara-se com a
agradável surpresa. Pusera-se a ler, avidamente o bendito texto, cujo final
deixara transparecer um fio de esperança. A pessoa
amada dissera que, sempre ao rever as fotos, sentia invadir-lhe,
inexplicavelmente, um sentimento de amorosidade. Fora o bastante, pois, a
partir daí, o relacionamento virtual começara a concretizar-se, adicionara-se
ao contato telefônico, o qual, com o
passar dos dias tornara-se frequente, numa progressão geométrica. Por residirem
em cidades diferentes, marcaram, para um reencontro preliminar, a cidade em que
nasceram – Rio Branco.
O contato pessoal fora sentimentalmente
excelente, romanticamente transcendental! A força do destino que havia separado aquele
casal por quarenta anos, viera suscitar, no outono da vida, um amor
reciprocamente sólido, absoluto e indelével.
Aquele menino, sujeito a tamanhas insensibilidades
para não vir ao mundo, achara-se consciente de sua autenticidade humana,
disposto a superar todos os dias sua própria personalidade, despedaçando,
dentro si, tudo o que lhe parecera velho e morto, pois lutar é a palavra
vibrante que dá força aos fracos e determina os fortes.
Aparadas algumas poucas arestas, acertados determinados
pontos, dirimidas quaisquer incertezas, os protagonistas passaram a viver
juntos o desenrolar da vida, rememorando os dizeres do poeta: “veja os
encontros, superando os desencontros, que motivam os reencontros, refazendo o
inacabado”.
Hoje ele sente que terá pela vida afora,
Uma rainha,
até quando Deus quiser!
Ih! Quase
foi dito agora
O n o m e dessa mulher!
– Agora quero ressalvar enganos,
Declarando que, neste mundo, nada vi nem vivi,
Pois só depois de quarenta anos,
Aí, sim – foi
que eu nasci!.* José Augusto de Castro e Costa é cronista acreano. Reside em Brasília. Neste blog, já escreveu a série Brasileiro por opção, e agora escreve outra série intitulada HISTÓRIA QUE O ACRE ESCREVEU.
> Leia aqui outros textos de José Augusto de Castro e Costa.
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