quinta-feira, 1 de novembro de 2012

KANT NA VELHICE: RIGOR NA TEORIA E NA PRÁTICA

PROFª. INÊS LACERDA ARAÚJO


Não bastasse a genial contribuição da Crítica da Razão Pura para uma revisão sem volta da metafísica tradicional, Kant se volta para a razão prática, para as fronteiras entre filosofia e teologia, para o papel dos juízos de valor, as avaliações morais, sempre guiado pelos princípios da pura racionalidade.

A experiência com as coisas que nos cercam só é possível quando situadas no tempo e no espaço (Crítica da Razão Pura - 1781) e também quando organizada pelas categorias, que são como que nossas habilidades lógicas de pensar, de tornar as coisas inteligíveis para nós, sem depender de uma noção cara à filosofia até então: a de que a própria realidade tal qual ela é em si mesmo chega às representações mentais, que as causas físicas são também causas metafísicas, que o mundo é gerado por causas independentes de nosso conhecimento, entre elas, a maior e mais inalcançável - Deus como criador.

Kant teve que enfrentar a censura devido a suas ideias sobre religião e Deus. Frederico Guilherme II primeiramente apoiou Kant, mas depois censurou os escritos sobre religião (entre eles: Religião nos Limites da Razão Pura). Havia um comitê para assuntos religiosos que ameaçava com reclusão e perda do cargo na universidade. O rei era adepto do movimento Rosa Cruz, para Kant fruto da irracionalidade, do fanatismo e do obscurantismo.

Aos homens é necessário postular Deus, mas não há como provar que é ele o criador, que o mundo teve um começo. Problemas que a própria razão levanta ela não pode resolver. Há os limites da razão, ela só funciona situando as coisas, classificando-as, buscando sua causalidade, predicando sua existência. E isso sempre por meio de princípios puros a priori. É próprio aos homens especular, a razão se esforça, mas as ideias de Deus, alma imortal e origem do mundo extrapolam tempo e espaço, não são "captáveis" pelos conceitos e categorias racionais. A lei moral que cada um traz em si é a base para a crença em Deus e não o inverso, quer dizer, agimos moralmente não por ordem divina e sim livremente. Deus e alma imortal são, portando, objeto de fé, a certeza que se tem deles é moral, não racional. Em religião vale a "sinceridade do coração".

Do que a razão precisa, com o que ela "aprende"? Apenas com a experiência.

Essa lição kantiana tem sido sistematicamente ignorada até em nossos dias: moral e religiosidade diferem do conhecimento (científico ou não). Impor uma religião, acreditar que ela é única, que sem ela a humanidade estaria sem rumo, tem acarretado trágicos resultados: fanatismo, perseguição e muita crueldade...

A moralidade, por sua vez, depende da liberdade, da autonomia, dar a si mesmo suas leis, sem precisar de uma autoridade, de dogmas, de doutrinas. A moralidade prescinde de base externa, esteja ela na natureza ou nos"céus".

Nessa altura Kant já morava em sua própria casa e ainda levantava bem cedo, fumava seu cachimbo, tomava o chá, passeava nos arredores, sempre bem vestido. Recebia convidados para o jantar, os divertia com assuntos diversos. Com a morte de Green, perdeu o amigo que lia seus escritos, ouvia suas confidências e o recebia com regularidade. Kraus foi outro amigo bastante próximo. Era uma personalidade controvertida, escritor de vários livros sob anonimato, mas bastante caro a Kant. Essa morte também foi outro choque.
Königsberg, com o castelo nos fundos e a casa de Kant na frente, à esquerda.
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Se há um conceito que dá sentido e amarra a obra, o pensamento e a vida de Kant, esse conceito é o da liberdade. Por ela lutaram os franceses, a liberdade e a autonomia fundamentam a moral, a própria natureza tem como fim último constituir um tipo de cultura humana regulando a ação para que os homens, com sua liberdade individual, não lutem entre si. Para tal eles podem constituir uma sociedade civil cosmopolita, que administre a justiça por leis universais, para todas as nações. Liberdade de palavra e de escrita, um público cultivado, um estado ético que una os homens sob leis sem coerção, apenas seguindo as leis da virtude, esse é o ideal, um ideal cosmopolita. Pode-se dizer que ainda não o alcançamos, mas almejarmos chegar a ele já vale.

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Nos últimos seis ou sete anos Kant decaiu, física e mentalmente. Fraco, passou a levar uma vida reclusa, suas notas eram confusas, o grande pensador perdia a capacidade de pensar. "Muitas das anedotas sobre as visões e hábitos indecentes se originam, claro, deste período. Não são indicativos de sua filosofia e nem de sua personalidade" diz o biógrafo M. Kuehn (p. 416). Quando morreu (fevereiro de 1804) já não reconhecia as pessoas, gostaria de ter ido antes, não temia a morte. Seguira na prática o que elaborara nas teorias: aguentar as vicissitudes da vida e abster-se, moderar, seguir o imperativo do dever enquanto homem livre.


* INÊS LACERDA ARAÚJO - filósofa, escritora e professora aposentada da UFPR e PUCPR.

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