quarta-feira, 24 de abril de 2013

LENDA

Jorge Luis Borges


Abel e Caim se encontraram depois da morte de Abel. Caminhavam pelo deserto e se reconheciam de longe, porque os dois eram muito altos. Os irmãos sentaram-se na terra, fizeram um fogo e comeram. Guardavam silêncio, à maneira das pessoas cansadas quando o dia declina. No céu despontava alguma estrela, que ainda não recebera seu nome. À luz das chamas, Caim notou na testa de Abel a marca da pedra e deixou cair o pão que estava para levar à boca e pediu que seu crime lhe fosse perdoado.

Abel respondeu:

– Tu me mataste ou eu te matei? Já não me lembro; aqui estamos juntos como antes.

– Agora sei que você me perdoou de verdade – disse Caim –, porque esquecer é perdoar. Eu também tentarei esquecer.

Abel disse devagar:

– Assim é. Enquanto dura o remorso, dura a culpa.


BORGES, Jorge Luis. Poesia. [trad. Josely Vianna Baptista]. São Paulo: Companhia das Letras, 2009. p.70

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