sexta-feira, 5 de abril de 2013

O ETNÓGRAFO

Jorge Luis Borges


O caso foi-me narrado no Texas, mas isso tinha ocorrido
em outro estado. Conta com um único protagonista,
não obstante em toda história os protagonistas
sejam milhares, visíveis e invisíveis, vivos e mortos.
Chamava-se, creio, Fred Murdock. Era alto, à maneira
americana, nem loiro nem moreno, com um perfil de
machado, de muito poucas palavras. Não havia nele
nada de singular, nem sequer essa fingida singularidade
que é própria dos jovens. Naturalmente respeitoso,
não desacreditava dos livros nem dos que escrevem
os livros. Estava naquela idade em que o homem ainda
não sabe quem é e está pronto para se entregar ao que
o acaso lhe propõe: a mística do persa ou a desconhecida
origem do húngaro, as aventuras da guerra ou da
álgebra, o puritanismo ou a orgia. Na universidade
aconselharam-no a estudar línguas indígenas. Há ritos
esotéricos que perduram em certas tribos do oeste; seu
professor, um homem entrado em anos, propôs-lhe que
fosse morar numa reserva, a fim de observar os ritos
e descobrir o segredo que os bruxos revelam ao inciado.
Ao voltar, redigiria então uma tese que as autoridades
do instituto publicariam. Murdock aceitou, exultante.
Um de seus antepassdos morrera nas guerras da
fronteira; essa antiga discórdia de suas estirpes era
um vínculo agora. Previu, certamente, as dificuldades
que o esperavam; devia conseguir que os homens
vermelhos o aceitasse, como um dos seus. Empreendeu
a longa aventura. Morou mais de dois anos na pradaria,
entre paredes de adobe ou ao céu aberto. Levantava-se
antes da aurora, deitava-se ao anoitecer, chegou a sonhar
num idioma que não era o de seus pais. Acostumou
seu paladar a sabores ásperos, cobriu-se com roupas
estranhas, esqueceu os amigos e a cidade, chegou a
pensar de um modo que sua lógica rejeitava. Durante os
primeiros meses de aprendizado tomava notas sigilosas,
que depois rasgaria, talvez para não levantar suspeitas,
talvez porque já não precisasse delas. No final de um
prazo predeterminado por certos exercícios, de índole
moral e de índole física, o sacerdote ordenou-lhe
que fosse recordando seus sonhos e que os confiasse
a ele quando o dia clareasse. Comprovou que nas noites
de lua cheia sonhava com bisões. Confiou esses repetidos
sonhos a seu mestre; este acabou lhe revelando a
doutrina secreta. Certa manhã, sem se despedir de
ninguém, Murdock partiu.
Na cidade, sentiu saudades daquelas tardes iniciais
na pradaria em que havia sentido, tempos antes, saudades
da cidade. Dirigiu-se ao gabinete do professor e lhe disse
que conhecia o segredo e que havia decidido não revelá-lo.
– Está preso a um juramento? – perguntou o outro.
– Não é essa a razão – disse Murdock. – Naqueles
ermos aprendi algo que não posso contar.
– Talvez a língua inglesa seja insuficiente? –
observaria o outro.
– Nada disso, senhor. Agora que possuo o segredo,
poderia enunciá-lo de cem maneiras diferentes e mesmo
contraditórias. Não sei muito bem como lhe dizer que o
segredo é precioso e que agora a ciência, nossa ciência,
parece-me uma mera frivolidade.
Depois de uma pausa, acrescentou:
– Além do mais, o segredo não vale o que valem os
caminhos que a ele me levaram. Esses caminhos devem
ser trilhados.
O professor disse friamente:
– Comunicarei sua decisão ao Conselho. O senhor
pensa viver entre os índios?
Murdock respondeu:
– Não. Talvez não volte à pradaria. O que seus
homens me ensinaram vale para qualquer lugar e para
qualquer circunstância.
 Foi essa a essência do diálogo.
Fred casou-se, divorciou-se e agora é um dos
bibliotecários de Yale.


BORGES, Jorge Luis. Poesias. [trad. Josely Vianna Baptista]. São Paulo: Companhia das Letras, 2009. p.38-40

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