De onde vem esta voz frenética e atroante
Que
parece escapar do peito de um gigante,
E,
rasgando do espaço o ilimitado véu,
Espalha-se
a gritar por todo o vasto céu,
Após
ter abalado a mata, a costa, a serra,
Como se
acaso fosse o desabar da terra?
De onde
vem ela? Agora é branda, a recordar
Um
segredo de amor, nos campos, ao luar;
O
gorjeio sutil de um pássaro encatado
Que,
contemplando o azul, fica maravilhado,
Entre-abre
o bico de ouro e, quase sem querer,
Solta
um canto que faz a gente estremecer.
Por
acaso será de algum gênio escondido
Cujo
palácio escuro, amplo e desconhecido,
Inda o
não viu ninguém – esta esquisita voz,
Tão
rude e tão sutil, tão meiga e tão feroz?
Por que
anseia, curvado e trêmulo, o arvoredo,
A
maneira de leões a tiritar de medo?
Assim
pergunta a brisa, ouvindo com terror
Um
grito que se muda em cântico de amor.
Não
achando resposta o vento em ânsia estranha,
Cresce,
incha, rodopia, as árvores assanha,
Ergue
nuvens de pó, torna-se furacão,
E é um
doido a sacudir os ferros da prisão.
O
espaço é um antro azul, imenso, esplendoroso,
E por
ele o tufão agita-se furioso,
Raiva,
fugindo à voz que entre explosões e ais
O
acompanha, e é maior, e o aterroriza mais.
É o rio
que, a rolar, canta e ruge, violento,
Respondendo
talvez às perguntas do vento,
Que se
amedronta, ouvindo-o...
O rio é como um rei
Que nas
árvores tem uma formosa grei
De
pajens triunfais e olímpicas escravas,
A que o
sol dá broqueis, capacetes e aljavas.
Inda há
pouco rolava, estourando em cachões,
Na
queda... A luz do dia arrancava clarões,
Incêndios
imortais, estrelas, pedrarias
Do
tesouro real de suas águas frias...
A
cachoeira gloriosa era o espelho do sol,
Refletindo-se
nela, às horas do arrebol...
Das
águas a cair uns trêmulos salpicos
Ficam a
rutilar como adereços ricos
Nas
folhas de esmeralda, apresentando assim
Pérolas
e corais em cofres de cetim,
A modo
de brilhante e esplêndido debuxo
O mato
a revestir de um espantoso luxo.
Depois
– era uma encosta – e ele, tonto, desceu,
Desviando
um filete incendiado, que deu
Um
gemido tão vago, um suspiro tão doce
Que uma
ave se ocultou humilhada... e calou-se.
É que o
gigante, sempre indômito e revel,
Mandava
um fio de água a trêmulo docel
De
flores, e ela então, louca, ficou pingando,
Como um
pranto a rolar das flores soluçando...
Porém,
esta doçura em breve se acabou,
Porque
ele, impetuoso, o docel desmanchou,
E
avolumando o curso audaz, de lado a lado,
Deu um
pulo, entesou o tronco revoltado,
Empolando-se
todo em desesperos mil,
Sinuoso
e coleante a modo de um réptil,
Cuja
cauda sem fim, retorce de tal modo
Que
parece arrochar, gemendo, o mundo todo.
As
onças a rugir chegam de muito além
Para
espiar o duelo e, não vendo ninguém,
Rolam
os olhos maus nas órbitas redondas,
Esgueiram-se,
e, curvando as patas hediondas,
Vão se
agachar atrás das árvores senis,
A cujo
tronco adusto, assombradas e vis,
Se
colam... À feição de colossais espectros,
Ou
desgraçados reis sem tronos de ouro e cetros,
As
árvores, tremendo, afilam-se, de pé,
E ante
o rio voraz, dizem juntas: – Quem é?
Mas o
altivo gigante, escachoando, avança,
Aos
barrancos iguais, colérico, se lança,
A
separar com fúria as pedras, a torcer
As
plantas, a arrancar os troncos com prazer...
E os
troncos vão boiando aos tropicais fulgores,
Rebentando-se
ainda em preciosas flores
Como
ninhos ideais que aos pássaros seduz,
E às
falenas gentis, bordadas a ouro e luz,
Que,
vendo-os a descer entre olores e roncos,
Adejam
de vagar e pousam nesses troncos...
E
bifurca-se o rio, ilhas formando aqui,
Um
estreito adiante, um lago puro ali...
Mais
além se desdobra em monstruosas curvas,
Encrespa
ferozmente as grandes águas turvas,
Arranca
uma canoa, e a vai levando já,
Por
sobre a correnteza, enganadora e má,
Até que
ela se afunda, e, como o adeus extremo,
Vê-se
após, à flor da água, abandonado – um remo...
Assim o
rio, em sua heróica estupidez,
Deixa
em tudo um sinal de glória ou de revés...
É o
Deus onipotente e eterno destas zonas
Este
gênio monstruoso e angélico: – O AMAZONAS,
De que
as árvores são esplêndidas galés,
E tem
por cortesãs onças e jacarés,
Que
empinam a cabeça em meio ao sorvedouro,
Para
que o sol os possa aureolar de ouro...
E a
terra ama o titã que a fecunda e a destrói,
Como se
fora um Deus! Um mártir! Um herói!
Assim,
entre o respeito e as orações da mata,
O rio
que, ao luar, é uma cobra de prata
E o
sol, grande réptil de fogo, ouro e rubins,
Imenso
como o céu, reflete-lhe os confins,
E ao
chegar no oceano os seus furores dobra...
Ninguém
pode domar a enraivecida cobra
Que
pula, curveteia, um tal barulho faz,
Que
parece trazer consigo satanás.
Mas o
Atlântico enorme as fauces escancara
E a
cobra, mais furiosa, ao inimigo encara,
Põe-se
quase de pé, tomba arrancando uns sons,
Que da
angústia e do horror têm os terríveis tons.
Cai
soberanamente em cima do oceano,
E
esboroa-se após num desespero insano,
Estrondando
um rugir que vai de norte a sul...
O mar
no inquieto seio ilimitado, azul,
Todo o
peso do rio indômito recebe,
E o
engole. É um mostro mau que a outro monstro bebe,
Tal um
sonho que ainda há pouco era o melhor,
Realizado,
desfaz-se ante um sonho maior...
MANGABEIRA, Francisco. Poesias: Hostiário,
Tragédia Épica, Últimas Poesias. Rio de Janeiro: Anuário do Brasil, s/d.
p.338-345
* |
* Francisco Mangabeira como médico da revolução acreana, fotografia in Francisco Mangabeira: sonho e aventura, de Paulo Mangabeira-Albernaz.
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