segunda-feira, 3 de março de 2014

ANJOS DO ABISMO

Ruy Barata (1920-1990)


ANJOS DO ABISMO

Quero chegar diante de ti
não como o vulto familiar que doura o teu sossego,
não como a imagem do sonho que se perde na bruma,
mas como o fantasma de dentro de ti mesmo.
Quero chegar diante de ti,
e olharás minha longa cabeleira,
minhas faces esvoaçantes, meus olhos incolores
e adivinharás que atravessei os limites do eterno.

Ó esta noite todas as luzes estarão veladas pelo sono,
todos os silêncios serão devorados pela eternidade,
todas as chagas ressurgirão das dores,
todos os olhos estarão desmesuradamente abertos
mas não poderemos sentir a Sua mágica presença
porque então passamos à pátria das essências.

Esta noite chegarei diante de ti,
nossas almas se confundirão na grande viagem,
nossos olhos se alongarão ao paraíso dos símbolos
onde nasce o grande mar das almas moribundas.
Chegarei sobre a tranquilidade dos teus cânticos
e te assombrarás com este vulto notívago de morto
que se suspende milagrosamente além dos tempos
e que conduz as asas multicores
no derradeiro voo das espécies.
Ó sim sou eu por sobre as nebulosas,
fantasma que povoa quatro mundos,
imagem perdida e mais tarde encontrada
no ilimitado céu da poesia.


LÁ FORA ESTÁ O AMOR QUE NOS ESPERA

Esta noite como ficar prisioneiro dos teus braços
ó aparecida amada do princípio da vida?
Como escutarei as palavras de amor que dirás enlanguescida
quando lá fora anda a grande e misteriosa noite das perdidas?
Lá fora está o amor que nos espera,
lá fora está a noite plena que me soube amoroso,
lá andam os companheiros que se embriaga líricos e confidentes,
lá estão as mulheres que chegaram e desapareceram
sob as luzes da cidade desconhecida.

Ó amada quisera partir para a noite como quem caminha para o mar,
quisera partir ébrio de gozo, de emoções desconhecidas,
cantando cantando como os boêmios embriagados
e encher o mundo com o meu cântico de fraternidade.
Quisera partir para longe do amor que me prometes,
longe da oração que dirás transfigurada
pois Maura está perdida,
Maura a mais dedicada das filhas do Senhor.

De novo partir romântico e transcendente,
de novo sentir a mensagem dos mundos perdidos
e o cheiro das árvores que acordarão molhadas de sereno.
De novo ó tímido, ó louco,
esperar impaciente a volta das estrelas
com a mesma ânsia de quem espera as amantes,
com o mesmo enlevo do poeta antigo.

Ó noites distantes, ó noites misericordiosas,
noites de Maura, Olinda morta, Heloísa florindo em frente aos cutiteiros,
noites de paz, de fé, de quietude,
noites em que eu abrigava o amor de todas as mulheres.
Noites de sonho, noites de música velada,
noites de perfumes decadentes,
noites em que o amor era o mistério
e o rio era a esperança.

Noite pálidas, trêmulas estrelas nos céus primaveris,
halos de luz bailando no meu corpo
pela rua sonolenta da cidade feliz.
Ó como vos anseio,
em vós me vejo partindo iluminado,
os companheiros ruidosos,
os velhos adivinhando em nossos olhos os desejos
tristes flores de uma terra nunca vista.

Noites de junho, chuvas de janeiro,
amor de Fernanda no mês de Maria.
Natal festivo, sinos das capelas,
quando eu ia transfigurado pelas velas
levar a prece ao virginal Menino.
Ó como vos sinto mais perto e emotivas,
como vos lembro tão límpidas e claras
e como vos desejaria agora sobre os meus olhos adormecidos
tão cheios de vós, tão ansiosos das revelações.

Ó amada não me deixes esquecido no amor tranquilo das alcovas,
não deixes meu canto parar nas janelas fechadas
como as preces dos que vão morrer.
Eu quero a noite,
a noite calma dos passos soturnos,
a noite boemia dos subúrbios distantes,
a noite lírica dos que não têm amantes,
a noite miserável dos cães vagabundos.


POEMA DOS NOTURNOS CAMINHOS

Se chegares agora dos noturnos caminhos
eu te oferecerei meus olhos claros,
os pássaros maravilhosos dos meus bosques
e a inocência dos meus gestos alegres.
Embalarei teu sono calmo sobre as ramarias
com o acalanto notívago de uma canção materna.
Eu sou aquele que faz reflorescer a erva nos caminhos,
o que traz esta doce ternura aos teus olhos aflitos
e o que te comove como estranha religião.
Eu sou o feliz mensageiro dos momentos alados
e na grande noite sobre os cutiteiros floridos
te oferecerei meus dons, a luz das minhas estrelas
e te amarei grande e luminoso como os mortos.
Sobre a tranquilidade dos meus rios encantados
serei tão manso que te oferecerei apenas tenras flores
e as palavras felizes que dissemos na infância.


BARATA, Ruy Guilherme. Anjo dos abismos (poesias). Rio de Janeiro: José Olympio, 1943. p.17-19, 25-29, 37-38

> Anjo dos abismos é o primeiro livro do poeta paraense Ruy Barata, publicado em 1943. Além de poeta, Ruy Barata foi político, advogado, professor e compositor.

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