“Inocente, pura e besta”. É assim que a
ensaísta e professora Ivana Bentes diz ter chegado ao Rio de Janeiro, em 1980,
família de comerciantes, sem sobrenome para ostentar, nascida em Parintins, no
Amazonas, e tendo passado a juventude em Rio Branco, no Acre. Foi a entrada em
uma universidade pública, a Escola de Comunicação (ECO) da Universidade Federal
do Rio de Janeiro, que mudou sua trajetória. Ivana é graduada em
Comunicação Social, mestre e doutora em Comunicação pela Universidade Federal
do Rio de Janeiro – UFRJ. Atualmente leciona no Programa de Pós-Graduação em
Comunicação da mesma universidade, onde também é diretora da Escola de
Comunicação. É autora de Cartas ao Mundo: Glauber Rocha (Companhia das Letras,
1997) e Joaquim Pedro de Andrade: a revolução intimista (Editora Relume Dumará,
1996). É co-editora das revistas Cinemais: Cinema e outras questões
audiovisuais e Global (Rede Universidade Nômade).
Qual a sua avaliação sobre os parâmetros
curriculares recém-instituídos pelo Conselho Nacional de Educação para os
cursos de jornalismo?
Um retrocesso e uma quase tragédia. Surge na
contramão do entendimento de pensadores e teóricos da comunicação que fizeram o
movimento oposto décadas atrás, procurando incluir o jornalismo como parte de
uma formação mais ampla.Foge ao contexto atual de convergência das mídias e de
produção da informação nas redes sociais que exige um profissional com
múltiplas habilidades, um analista simbólico, um ensaísta, um ativador e
produtor de desejos. Esse perfil não tem nada a ver com o profissional
adestrado por uma formação fordista e extremamente limitada, do “quê, quem,
como, onde”, e que passa longe de todos os clichês que construímos em torno
desse personagem.
As novas diretrizes respondem a uma crise de mediação. Mas o
jornalista não é mais o mediador privilegiado, o “gatekeeper”, o guardião do
que é ou não é notícia, do que é ou não noticiável. As corporações de mídia e o
jornalismo nunca foram tão questionados e buscam manter de pé uma mística da
excepcionalidade da atividade jornalística. Com ou sem formação especializada,
a mídia somos nós. O que não acaba com a necessidade de formação, mas a estende
para toda a sociedade. O jornalismo é importante demais para ficar na mão de
corporações, cartórios e especialistas.
A sra. começou afirmando que vê um retrocesso
e uma quase tragédia…
É uma quase tragédia porque acredito que o
paradigma das redes, do midialivrismo, do jornalismo-cidadão, a comunicação
pós-mídias digitais, os estudantes, professores, ativistas e teóricos que lutam
por uma formação desengessada, todos eles vão canibalizar as diretrizes (do
CNE) e subvertê-las. Pode ter retrocesso, mas não tem volta. As novas
diretrizes são fruto de uma disputa por poder de um grupo de professores e
especialistas a quem chamo de “as viúvas de Gutemberg”, extremamente
corporativos e que funcionam no campo da Comunicação como a “vanguarda da
retaguarda”, para sermos gentis. O que está em curso é a tentativa de manter
uma excepcionalidade para a atividade jornalística e também uma manobra para a
volta da exigência do diploma de jornalista para exercer a profissão, que foi
derrubado em 2009 e até agora não fez a menor falta.
A sra. é contra o diploma de jornalista?
Sempre fui contra. O fim da obrigatoriedade
não acabou com os cursos de Comunicação, nem diminuiu a busca pela habilitação
em Jornalismo, campos que nunca foram tão valorizados. Os jornais sempre
burlaram a exigência de diploma pagando muitas vezes os maiores salários aos
não-jornalistas, cronistas, articulistas, vindos de diferentes campos. As
universidades não precisam formar os “peões” diplomados, mas jovens capazes de
exercer sua autonomia, liberdade e singularidade, dentro e fora das
corporações. Não precisamos de profissionais “para o mercado”, mas capazes de
“criar” novos mercados, jornalismo público, pós-corporações, produção colaborativa
em rede.
O mais importante nenhuma entidade corporativa defendeu nem pensou:
uma seguridade nova para os freelancers, os precários, aqueles que não têm e
nunca terão carteira assinada. Essas são as novas lutas no capitalismo.A ideia
de que para ter direitos é preciso se “assujeitar” a uma relação de
patrão-empregado, de “assalariamento”, é francamente conservadora.
Sem a obrigatoriedade do diploma, qual o
sentido de um jovem ingressar em uma faculdade de Comunicação?
O capitalismo, as revoluções dentro do
capitalismo e as ações anti-capitalistas, a publicidade, a economia imaterial,
tudo isso depende desse domínio midiático e da posse dessas linguagens. O
capital já entendeu isso faz tempo. E se quisermos pensar jornalismo público,
jornalismo do comum, a produção de um midiativismo capaz de ativar os desejos
por mudanças sociais, tudo isso passa por um outro tipo de formação. A
comunicação é central na sociedade de redes. Se o capitalismo é comunicacional,
a revolução terá que ser também midiática. É um campo fascinante, que não para
de mobilizar os jovens.
Há duas décadas, a sra. iniciou sua vida
acadêmica. Já formou centenas de jornalistas que estão no mercado. Eles estão
cumprindo seu papel social?
A Escola de Comunicação da UFRJ formou e
forma desde a Fátima Bernardes, que até pouco tempo atrás dividia a bancada do
Jornal Nacional com William Bonner, até o Rafucko, que acabou de lançar um
vídeo com mais de 800 mil visualizações. Esse vídeo desconstruía, criticava e
escrachava um editorial da Globo sobre as manifestações e a liberdade de
expressão. Formamos a elite que reproduz o poder e os que lutam por mudanças
radicais e se arriscam e inovam. Essa disputa é feita dentro da universidade. Somos
criticados por formarmos editorialistas, jornalistas que colocam sua
inteligência a serviço do capital ou nos entretendo com perfumaria. E, ao mesmo
tempo, um blog da Veja, me acusou de ser uma “blackblocteacher”, de formadora
de blackblocs e ativistas radicais, em um texto ressentido e equivocado, mas
que não deixa de ser um elogio.
Quais são as implicações do surgimento da
chamada nova classe média do ponto de vista comunicacional?
As periferias são laboratórios de mundos e a
riqueza do Brasil. Não mais os pobres assujeitados e excluídos de certo
imaginário e discurso, mas uma ciberperiferia, a riqueza da pobreza (disputada
pela Nike, pela Globo, pelo Estado) que transforma as favelas, quilombos
urbanos conectados, em laboratórios de produção subjetiva. A carne negra das
favelas, os corpos potentes e desejantes, a cooperação sem mando, inventando
espaços e tempos outros (na rua, nos bailes, lanhouses e lajes), estão sujeitos
a todos os tipos de apropriação. É que as favelas e periferias são o maior
capital nas bolsas de valores simbólicas do país, pois converteram as forças
hostis máximas (pobreza, violência, Estado de exceção) em processo de criação e
invenção cultural. Além disso, o midialivrismo ganha força na periferias, em
projetos como a ESPOCC, Escola Popular de Comunicação Crítica da Maré, Viva
Favela, Agência Redes Para a Juventude, que formam comunicadores populares e
midiativistas.
Isso tudo é muito novo no Brasil.
O Rio de Janeiro serve de exemplo. É um
termômetro da difícil e paradoxal tarefa de calibrar essa euforia pós-Lula, do
presidente Macunaíma que turbinou a periferia, e os retrocessos no governo
Dilma, que trouxe os “gestores de subjetividade”, que revertem e monetizam a
potência das favelas e periferias para o turismo, corporações, bancos e para o
consumo. O que vemos na publicidade das UPPs, da Copa do Mundo e dos shoppings
é o que chamo de inclusão visual dos jovens negros ou da cultura da periferia.
Mas os mesmos jovens são mortos pela polícia como elementos “suspeitos” nas
favelas ou impedidos de entrar nos shoppings para dar um rolezinho.
A ascensão social de jovens das periferias
tem deixado parte da sociedade em transe. Eles estão no centro da profunda
transformação social…
Aí vem a reação da Casa Grande, e a mídia em
geral amplifica esse discurso, colocando travas e controle na mobilidade urbana
e no direito de ir e vir da juventude popular. A juventude negra e periférica
vira uma “classe ameaçadora”, que não é bem-vinda nos espaços de consumo da
classe média branca. Ao estado de exceção e à violência contra os pobres se
acrescenta uma polícia que reprime o funk e os rolezinhos. Essa incapacidade de
entender as novas formas de sociabilidade e mobilidade dos jovens traz à cena o
velho horror das classes populares e o apartheid racial, social e cultural. A
ascensão social expôs a crise das cidades, a privatização dos espaços públicos
e o desinvestimento nos equipamentos de lazer. O esquema de segurança dos
shoppings, revistando e controlando os pobres, é a ostentação do fracasso do
Estado e da sociedade na partilha da cidade.
As maiores publicações do país,
como Veja, Folha de S. Paulo, Estado de S. Paulo, TV Globo, vieram a público
explicitar seus critérios editoriais. Trata-se de uma resposta às inúmeras
críticas que a imprensa vem recebendo da população?
A mídia no Brasil parece
querer substituir o Estado de direito, se vê como braço do Estado, podendo,
inclusive, colocá-lo em crise a qualquer momento. Negocia denúncias, pessimismo
e otimismo, reputações. Mal disfarça a editorialização dos fatos. Mas o mais
preocupante é quando infundem o medo das ruas, da política, dos pobres, da
juventude, da “esquerda”. Interferem e direcionam fatos e investigações,
produzem histeria coletiva e ódio a grupos e movimentos sociais inteiros. Ao
mesmo tempo são espaços de controvérsias e disputas necessárias e estratégicas,
por isso repito sempre, critica a mídia? Odeia a mídia? Torne-se mídia!
A morte do cinegrafista Santiago Andrade e a
posterior perseguição de parte da imprensa aos blackblocs são um sintoma de um
discurso midiático perdido ou, ao contrário, posicionado estrategicamente?
Já vimos essa historia da construção de
inimigos: os comunistas, os subversivos, maconheiros e agora os blackblocs, a
ameaça que vai destruir a democracia, a Copa, a moral e os bons costumes. É
redutor demais. Vidas são demolidas nesse jogo de demonização, como vimos na
repressão brutal da polícia aos manifestantes, nas prisões arbitrárias e
mortes, nas capas sensacionalistas da Veja e primeiras páginas e editoriais de
jornais e televisões. O nível de manipulação dos fatos foi grosseiro depois da
morte do cinegrafista da TV Bandeirantes. A lei que tipifica terrorismo, que
querem votar a toque de caixa, e a pauta do medo buscam esvaziar e mudar foco
das justas reivindicações para o comportamento dos manifestantes. E a mídia vem
legitimando a desproporcional repressão policial, pouco questionada nos
noticiários corporativos. Temos uma polarização das ruas contra a associação
Mídia-Estado-Polícia, um confronto que produz avanços e retrocessos.
A Mídia Ninja, que podemos chamar de filha pródiga
do movimento Fora do Eixo, nasceu e ganhou muita evidência durante as
manifestações de junho de 2013. A sra. vê a Mídia Ninja e suas derivações como
o futuro da comunicação?
Um dos efeitos dos protestos de 2013 no
Brasil foi a explosão das ações midiativistas. A Mídia Ninja fez essa disputa
de forma admirável, amplificando a potência da multidão nas ruas. Ela passou a
pautar a mídia corporativa e os telejornais ao filmar e obter as imagens do
enfrentamento dos manifestantes com a polícia, a brutalidade e o regime de
exceção. O papel dos midialivristas e dos coletivos e redes de mídias autônomas
não pode ser reduzido ao campo do jornalismo, mas aponta para um novo fenômeno
de participação social e de midiativismo (que usa diferentes linguagens, escrachos,
vídeos, memes, para mobilizar). A cobertura colaborativa obtém picos de milhares
de pessoas online, algo inédito para uma mídia independente. Nesse sentindo a
comunicação é a própria forma de mobilização.
E o Fora do Eixo?
O Fora do Eixo é um laboratório de
experiências culturais e de invenção de tecnologias sociais radicais, que
conseguiu transformar precariedade em autonomia. Ele inventou uma forma de
viver coletiva e restituir o tempo que o capital nos rouba de uma forma que me
toca e mobiliza. As causas políticas que defendem são as minhas e as de muitos:
mídia livre, governança, democracia direta, combate a desigualdade e aos
preconceitos, defesa da vida, potencialização da autonomia, da liberdade,
economia colaborativa, invenção de mundos.
O Fora do Eixo possibilita que
jovens dispensem empregos “escravos” ou precários na mídia tradicional, em
produtoras comerciais, agências de publicidade, ou qualquer emprego fordista, e
passem a inventar a sua própria ocupação. Conheço o Fora do Eixo desde 2011. Na
prática, são uma rede de mais de mil jovens que revertem seu tempo e vida para
um projeto comum com um caixa coletivo único que paga comida, roupa e casa
coletiva, sem salário individual e um projeto comum. Eles não têm medo de
dialogar com os poderes instituídos, ao contrário de um certo discurso
midiático que procura criar um grande horror à política, que só afasta os
jovens e muitos de nós das disputas.
E isso tem muito a ver com as suas
pesquisas não se intimidam em enxergar novos dispositivos, conceitos e
instrumentais, redes sociais. Qual é a resposta que a sra. procura?
Antes de tudo, viver e lutar por uma vida não
fascista,no sentido colocado por Michel Foucault, de lutar contra o “fascismo
que nos faz amar o poder, desejar esta coisa que nos domina e nos explora”.
Quero experimentar uma vida menos “normopata”, uma erótica do contato que
restitua o prazer de vivermos juntos.Sou fascinada pelos dispositivos e a forma
como coevoluímos com eles, reinventando o social, produzindo novos prazeres e
angústias, sem deixar de perceber como também expropriam o nosso tempo, nossa
libido, nossa energia e nos colocam para trabalhar num novo regime de
exploração da vida, brutal.
Tudo isso está provocando uma mutação
antropológica. Acompanho e vivo de dentro esses atravessamentos. Recuso
transformar os conceitos em juízes das experiências, o intelectual “justiceiro”
que se vê ao largo, acima, distante dos fenômenos que analisa e estuda. Não
tenho mais objetos de estudo, mas parceiros que me estimulam. Fiz a passagem para
o que chamo deteoriativismo ou o tédio da erudição. No que faço está implicado
todo o meu corpo e a minha vida. Como diria Nietzsche, ignoro o que sejam
problemas puramente intelectuais.
Não lhe preocupa a difusão generalizada de
manifestações rancorosas, preconceituosas, de baixíssima qualidade nas redes
sociais?
As redes sociais têm tudo o que a sociedade tem: discursos de ódio,
racismo, preconceito, desinformação, mas trazem a possibilidade veloz e massiva
de combate e de embate. Não vejo os jornais e a mídia supereditorializada como
“mais qualificada”. Ao contrário, um erro, uma distorção de análise, a
manipulação de fatos, o sensacionalismo são questionados nas redes e não nas
redações… Se esse novo ambiente produz venenos, ele cria com a mesma velocidade
os anticorpos.
Há pouco, a sra. tangenciou o tema da Copa do
Mundo no Brasil. Qual a sua opinião sobre esse tema? #NãoVaiTerCopa é algo a
ser defendido?
O "Não-Vai-Ter-Copa" deixa irada a
direita, a esquerda clássica e o governo ao seu simples enunciado. Eles e a
mídia corporativa vão errar de novo, como erraram feio no inicio das
manifestações em junho de 2013, com a histeria repressora e condenatória. O
#NãoVaiTerCopa alarga o campo da democracia ao explicitar o dissenso, ao
arriscar pensar diante de um fato consumado e de um processo que colocou os
interesses empresariais, lobbystas e midiáticos acima dos direitos básicos. Vai
ter Copa sim, mas não vai ter a Copa sonhada pela polícia de ordenamento e pelo
ufanismo e desenvolvimentismo ultrapassado.
Os “idiotas da objetividade”, como
dizia Nelson Rodrigues, são os que não conseguem ver que pós-junho de 2013 o
Brasil provou que não existe incompatibilidade entre torcer pelo Brasil no
futebol e fazer política. Ou seja, Vai Ter Copa e Não Vai Ter Copa.
Particularmente vou torcer e participar para que ocorram manifestações e vou
torcer pelo Brasil em campo. Essa é uma das formas de consolidar e aprofundar a
jovem e provocativa democracia brasileira.
Tivemos um beijo gay numa novela global,
casamento entre homossexuais é defendido abertamente por jornais, novas
formações familiares passaram a ser aceitas. Já podemos comemorar ou ainda
falta muito para termos uma sociedade mais tolerante?
O beijo gay na novela global faz parte das
expressões da luta por direitos e narrativas afetivas novas. Em terra de Marco
Feliciano, o beijo gay é político, é “fashion”, mas ainda estamos muito aquém
de uma cultura não homofóbica, não racista, menos patriarcal e machista, ou que
aceite a autonomia e liberdade das mulheres.O gay família, a lésbica fashion, o
traveco amigo, os homens, as mulheres, os jovens, só têm um destino: o amor
romântico em casal. Tabu é ter um relacionamento livre e autônomo. Está
faltando um Nelson Rodrigues, mas um Lars von Trier também serviria, para fazer
a narrativa dos novos tempos e nos atualizar de nós mesmos.
A sra. citou a necessidade de uma sociedade
menos patriarcal e machista.
A mulher continua tendo muito mais obrigações
do que direitos. Os homens continuam em pânico com a autonomia das mulheres. Um
dia sexo vai ser considerado modalidade esportiva e prostituição (masculina e
feminina), serviço e profissão de utilidade pública. Essa era uma das causas da
Gabriela Leite, mulher e ativista admirável que criou a ONG Davida e a grife
Daspu e morreu aos 62 anos. Moça de classe média que escolheu ser puta.O
deputado Jean Wyllys apresentou no Congresso o projeto dela, que regulamenta a
atividade dos profissionais do sexo. Uma causa que vale uma vida. E além dos
evangélicos e cristãos ainda tem feminista que é contra regulamentar a
profissão.
Tomo esse exemplo para dizer que as lutas das mulheres passam por
aceitar essas diferenças. Admiro as meninas do funk que ressignificaram o
feminismo nas favelas, ao fazerem a crônica sexual a quente da periferia de
forma explícita, como Tati Quebra Barraco, que considero uma Leila Diniz dos
novos tempos. Há os que pensam que ao se colocarem como protagonistas da cena
sexual, as meninas do funk só ocupam o lugar de poder dos homens. Na verdade, é
um discurso radical de autonomia e de liberdade que, vindo das mulheres,
subvertendo o sentido de “cachorras” e “popozudas”, coloca o preconceito e o
machismo de ponta cabeça. Vivemos um tempo difícil, mas apaixonante.
A educação no Brasil melhorou ou piorou
durante a administração petista?
Melhorou e muito. Não tem comparação os
investimentos que foram feitos na educação pública e nas universidades públicas
no governo do PSDB e na administração do PT. Fiz concurso público e comecei a
dar aulas na UFRJ no governo de FHC e foram 8 anos de sucateamento com as
universidades à míngua. O governo Lula reinvestiu nas universidades públicas
criando 14 novas universidades federais e 100 campi pelo interior do país e
também investiu fortemente nas Escolas Técnicas e Institutos Federais. O
programa do Reuni de reestruturação do espaço físico, expansão das vagas e
criação de novos cursos foi vital para as universidades federais. Só a Escola
de Comunicação ampliou em mais de 30 o número de professores por concurso
público, ampliou vagas, contratou-se técnicos etc. Claro que existem problemas
nessa expansão, mas foi decisiva e mudou o cenário radicalmente.
Outras duas
ações decisivas foram o Prouni (que abriu 700 mil vagas para jovens nas
universidades particulares) e as cotas raciais e sociais, que trouxeram novos
sujeitos sociais, vindos das camadas populares, para dentro da universidade. Ao
contrário dos que temiam os defensores de uma abstrata “meritocracia”, que o
nível de ensino iria “cair”, que iria se “nivelar por baixo” para atender aos
pobres, os cotistas surpreenderam e o que estamos vendo é o contrário. A
disputa na produção do conhecimento feita por novos sujeitos políticos. Poderia
ainda falar do Enem que articulou a entrada unificada para a rede de
universidades públicas. Hoje recebemos na ECO estudantes de todo o Brasil.
Sobre o ensino básico e fundamental acompanhei alguns debates e desafios
enormes que precisam ser enfrentados, entre eles o fato da escola fordista e
disciplinar, a “creche da tia Teteca”, o ensino sem corpo, sem desejo, sem
participação dos estudantes ter se tornado obsoleto e ineficaz. O desafio de
diminuir drasticamente o analfabetismo no país passa não só por mais
investimento na carreira e salário dos professores, mas por uma mudança de
mentalidade, não dá mais pra insistir no modelo da decoreba e do “vovô viu a
uva” num contexto de ampliação de repertórios e de universalização da cultura
digital, em que oralistas dominam, sem passar pelo letramento, a cultura
audiovisual e digital.
A sra. votou em Dilma Rousseff? Qual a sua
avaliação do primeiro governo dela?
Votei na presidenta Dilma esperando uma
radicalização e aprofundamento das políticas iniciadas no governo Lula, mas o
círculo virtuoso se rompeu em diferentes pontos. Tivemos retrocessos absurdos
nas políticas culturais, enfraquecimento do Programa Cultura Viva, que deu
protagonismo à produção dos Pontos de Cultura, vinda das bordas e periferias,
retrocesso no diálogo com os movimentos sociais e culturais. O Brasil que
estava na vanguarda de alguns processos, com a estabilidade econômica e
emergência de novos sujeitos sociais e políticos pós-redistribuição de renda,
apresenta uma reconfiguração do campo conservador, minando todo um capital
simbólico e real construído.
Estou falando de projetos engavetados como a
Reforma da Lei dos Direitos Autorais, os retrocessos no Marco Civil para a
Internet, a Lei Geral das Comunicações, obsoleta e concentracionista, que
continua intocável, o plano de barateamento e universalização da Banda Larga
pífio, o retrocesso no Código Florestal, a inexistência de propostas para a
legalização do aborto e legalização das drogas. O projeto
nacional-desenvolvimentista, fordista, da presidenta Dilma, que investe em
automóvel, hidrelétrica, petróleo, passando por cima da maior riqueza
brasileira, que é seu capital cultural, ferindo direitos, destruindo o
meio-ambiente, é insustentável. O maior paradoxo do desenvolvimentismo é querer
transformar a cosmovisão indígena, a produção da periferia, em “commodities”,
faturar a riqueza cultural, vender as favelas e sua cultura como pitoresco, os
indígenas como exóticos, a carne negra como produto desejável e fashion, mas
deixar isolados e sem autonomia esses mesmos sujeitos políticos, destituídos
dos seus direitos, assujeitados, ou tornados corpos dóceis.
Nesse momento,
continuo filiada ao PT, partido para onde entrei em 2011, no auge da crise do
Ministério da Cultura, com a nomeação catastrófica da ministra Ana de Hollanda.
Entrei para criticar e disputar de dentro avanços nas políticas públicas e para
discutir as novas relações de poder nas cidades, a emergência do trabalho
informal e do precariado em diferentes campos, a produção social que é a nova
força de transformação dentro do próprio capitalismo e para pensar a cidade e a
sociedade que queremos.
O governo Dilma é sustentado hoje por uma coalizão
conservadora. Então oscilo entre o hiperativismo pessimista (não vai avançar,
mas vamos tensionar ao máximo) e o otimismo crítico, que vai guinar para
esquerda, sob a pressão das ruas.
É com angústia que vejo o PT, partido com a
maior base social do Brasil, abandonar pautas e avanços históricos. Por isso,
estou no PT criticando de dentro, mas, ao mesmo tempo, faço parte do conselho
do mandato do deputado Jean Wyllys, parlamentar extraordinário. E votei em
Marcelo Freixo, ambos do PSOL. Acredito cada vez mais em frentes
suprapartidárias em torno das pautas e questões que nos interessam e na
transformação dos partidos e do Estado em redes de colaboração e num
Estado-Rede, co-gerido pela sociedade.
Vejo a democracia direta e participativa
como horizonte da política, mas enquanto isso, luto para que o atual sistema
partidário, inclusive o governo Dilma, incorpore as pautas e questões urgentes
que emergiram nas ruas. Temos que sair do infantilismo político e purista que é
o compromisso atávico com o inviável, pois a governança e a democracia direta
vão brotar da remediação e ruptura com o atual sistema partidário. Votando ou
não votando no PT, as ruas são ingovernáveis e temos que lutar contra a
financeirização da vida.
Nenhum comentário:
Postar um comentário