Roberto Gomes
Barbeiros e dentistas são assemelhados.
Roupas brancas, muito friso na camisa, limpinhos e formais. E são dados a
teorias e grandes discursos.
Como entender que dentistas queiram bater
papo conosco enquanto duelamos com aquele caninho que suga nossa saliva? Ou, quanto
aos barbeiros, se tememos aquela tesoura afiadíssima tirando finos de nossas
orelhas? E a navalha? E a broca? Como mexer um só músculo diante de tanta
ameaça?
- Hum, hum – a gente rosna para o dentista,
sem ter ouvido o que ele disse.
- Nada disso! – corrige ele – Nada disso!
- É verdade – concordamos, sendo essa a
melhor tática.
Ele retoma suas teorias. Ficamos de boca
aberta, o caninho sugando nossa saliva. Abre umas gavetinhas, cata novos
instrumentos de tortura, uns pinos ameaçadores, e volta:
- O que você disse? – pergunta ele.
Não dissemos nada. Estávamos lutando com o
caninho sugador.
Já os barbeiros são tidos como bons de papo.
Tive um amigo que era um tímido profissional, avesso a todo contato humano. Só
curtia música erudita e literatura clássica. Tinha horror de ajuntamentos, não
gostava de futebol, jamais colocara os pés num estádio. Sempre de terno e
gravata. Sapatos impecáveis e um guarda-chuva. Nenhum esporte. Preferia
traduzir discursos de Cícero.
Pois um dia o encontrei empunhando um jornal
de esportes.
- Que é isso? – perguntei.
- Vou ao barbeiro, disse ele.
- E daí?
Explicou, muito formal:
- Preciso bater papo com o barbeiro. Dia
desses se ofendeu porque eu não sabia que o time dele ganhara o campeonato.
Como tem o apelido de Gaúcho, achei que torcia pelo Inter, mas lá no sul existe
outro time, o Grêmio. Eu não sabia. E ele é gremista. Também não sabia. Quase
me mata com uma tesourada. Doutra feita – era dos poucos que ainda usavam
“doutra feita” – me censurou por desconhecer o goleador do seu time. Desde
então leio o jornal, decoro a classificação, memorizo o artilheiro. Como quem
vai para um exame da OAB.
E, diante do meu espanto, completou:
- Já viu a tesoura que ele usa? Um perigo.
Foi quando me lembrei do meu barbeiro. Depois
de várias tentativas inúteis de conversar comigo, ele mergulhou em devaneios:
- Sabe o que eu queria mesmo?
Parei de folhear uma dessas revistas que
folheamos em barbearia. Ele me olhou através do espelho:
- Ganhar na loteria. Já pensou?
- Já pensei. Mas não adiantou.
Ele me olhou com reprovação, o assunto era
sério, nada de gracejos. E resolveu podar minha sobrancelha, o que é
perigosíssimo. Uma piscadela e... Ele continuou:
- Ganhar uns vinte milhões, certo? Melhor,
vinte e cinco. Faço uma lista de parentes, dou um milhão para cada um. Mas – a
tesoura estalou no ar – não vai ser assim na moleza. Empresto. Juros baixos,
claro. Mas vou cobrar, pois eles têm que valorizar o dinheiro, fazer render,
trabalhar. Nada de moleza. Dinheiro se ganha trabalhando. Não é certo?
- Certíssimo, concordei, de olho na navalha
que ele empunhou.
- Depois, viajaria pelo mundo. Eu, as crianças
e a patroa.
Antes de terminar o corte, ele já havia
comprado um barco, feito uma excursão ao Betto Carrero, passado o Natal em Nova
York. Na volta, participou do programa do Ratinho, adquiriu um camarote no
Couto Pereira e deu uma volta olímpica no campo para comemorar a conquista da
Libertadores.
- Seria o máximo, não seria? – e, sem esperar
resposta, mandou que eu abaixasse a cabeça; ia passar a navalha no meu cangote.
Obedeci. Como diria o meu amigo dado aos
clássicos:
- Discordar? Quem há de?
* Roberto Gomes nasceu em Blumenau. Reside em Curitiba. Escritor, editor, tradutor e professor aposentado do Departamento de Filosofia da UFPR. É autor, entre outros, de Crítica da Razão Tupiniquim (1977), hoje em décima terceira edição, a propósito da qual Darcy Ribeiro escreveu, em Aos Trancos e Barrancos: "O Brasil volta, finalmente, a filosofar".
> Texto retirado do site Criar Edições, do autor.
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