Hermann Hesse (1877-1962)
Para relatar a história de minha vida, devo
recuar alguns anos. Se me fosse possível, deveria retroceder ainda mais, à
primeira infância, ou mais ainda, aos primórdios de minha ascendência.
Os poetas, quando escrevem novelas, costumam
proceder como se fossem Deus e pudessem abranger com o olhar toda a história de
uma vida humana, compreendendo-a e expondo-a como se o próprio Deus a
relatasse, sem nenhum véu, revelando a cada instante sua essência mais íntima.
Não posso agir assim, e os próprios poetas não o conseguem. Minha história é,
no entanto, para mim, mais importante do que a de qualquer outro autor, pois é
a minha própria história, e a história de um homem — não a de um personagem inventado,
possível ou inexistente em qualquer outra forma, mas a de um homem real, único
e vivo. Hoje sabe-se cada vez menos o que isso significa, o que seja um homem realmente vivo, e se
entregam à morte sob o fogo da metralha a milhares de homens, cada um dos quais
constitui um ensaio único e precioso da Natureza. Se não passássemos de
indivíduos isolados, se cada um de nós pudesse realmente ser varrido por uma
bala de fuzil, não haveria sentido algum em relatar histórias. Mas cada homem
não é apenas ele mesmo; é também um ponto único, singularíssimo, sempre
importante e peculiar, no qual os fenômenos do mundo se cruzam daquela forma
uma só vez e nunca mais. Assim, a história de cada homem é essencial, eterna e
divina, e cada homem, ao viver em alguma parte e cumprir os ditames da
Natureza, é algo maravilhoso e digno de toda a atenção. Em cada um dos seres humanos
o espírito adquiriu forma, em cada um deles a criatura padece, em cada qual é
crucificado um Redentor.
Poucos são hoje os que sabem o que seja um homem.
Muitos o sentem e, por senti-lo, morrem mais aliviados, como eu próprio, se
conseguir terminar este relato.
Não creio ser um homem que saiba. Tenho sido
sempre um homem que busca, mas já agora não busco mais nas estrelas e nos livros:
começo a ouvir os ensinamentos que meu sangue murmura em mim. Não é agradável a
minha história, não é suave e harmoniosa como as histórias inventadas; sabe a
insensatez e a confusão, a loucura e a sonho, como a vida de todos os homens
que já não querem mais mentir a si mesmos.
A vida de todo ser humano é um caminho em
direção a si mesmo, a tentativa de um caminho, o seguir de um simples rastro.
Homem algum chegou a ser completamente ele mesmo; mas todos aspiram a sê-lo,
obscuramente alguns, outros mais claramente, cada qual como pode. Todos levam
consigo, até o fim, viscosidades e cascas de ovo de um mundo primitivo. Há os
que não chegam jamais a ser homens, e continuam sendo rãs, esquilos ou
formigas. Outros que são homens da cintura para cima e peixes da cintura para baixo.
Mas, cada um deles é um impulso em direção ao ser. Todos temos origens comuns:
as mães; todos proviemos do mesmo abismo, mas cada um
— resultado de uma tentativa ou de um impulso inicial — tende a seu próprio
fim. Assim é que podemos entender-nos uns aos outros, mas somente a si mesmo
pode cada um interpretar-se.
HESSE, Hermann. Demian. Tradução Ivo Barroso.
Rio de Janeiro: Record, 2000. p.15-17
> Neste blog, leia aqui outros textos de Hermann Hesse.
Nenhum comentário:
Postar um comentário