Linguagem e Cultura
Outro dia um estudante indagou-me sobre a palavra saudade. E disse ele: - é verdade que essa palavra só existe em língua portuguesa, professora? Então, vamos explicá-la para que se tenha ideia como nasceu e qual sentido possui.
Outro dia um estudante indagou-me sobre a palavra saudade. E disse ele: - é verdade que essa palavra só existe em língua portuguesa, professora? Então, vamos explicá-la para que se tenha ideia como nasceu e qual sentido possui.
A palavra saudade veio do latim solitas,
solitatis, por meio das formas arcaicas soedade, soidade e
suidade, sob a influência de saúde e saudar. Solitas,
em latim, significa “solidão”, “desamparo”, “abandono”, “deixação”, do que
resultam alguns dos significados que tem saudade: “desejo de um bem do
qual se está privado”; “lembrança nostálgica e, ao mesmo tempo, suave, de
pessoas ou coisas distantes ou extintas, acompanhada do desejo de tornar a
vê-las ou possuí-las”.
Em 30 de janeiro celebra-se o "Dia da Saudade".
Na gramática saudade é substantivo abstrato, tão abstrato que só existe
na língua portuguesa. Os outros idiomas têm dificuldade em traduzi-la ou
atribuir-lhe um significado preciso: Te extraño (castelhano), J'ai regret
(francês) e Ich vermisse dish (alemão). No inglês têm-se várias tentativas:
homesickness (equivalente a saudade de casa ou do país), longing e to miss
(sentir falta de uma pessoa), e nostalgia (nostalgia do passado, da infância).
Mas todas essas expressões estrangeiras não definem o sentimento
luso-brasileiro de saudade. São apenas tentativas de determinar esse
sentimento que sente os povos de cultura portuguesa. Assim, essa palavra
saudade não é apenas um obstáculo ou uma incompatibilidade da linguagem, mas é
principalmente uma característica cultural daqueles que falam a língua
portuguesa.
Agora, respondendo a indagação do estudante,
ao que parece, essa forma saudade, com o mesmo significado, não é
encontrada em outras línguas românicas. Quanto a ser exclusividade do português
não se pode afirmar, pois outras línguas podem expressar a mesma ideia de “saudade”,
embora com mais de uma palavra. É sabido que as línguas descrevem de forma
diferente a realidade e os sentimentos, que também podem não ser os mesmos nos
diversos povos. Cada povo vê os fenômenos do mundo da mesma forma que os
outros, mas “interpreta” tudo isso de forma diferente, conforme as estruturas
de sua cultura, ou seja, a concepção das coisas do mundo por um povo tem
relação com a sua cultura e língua e é, de certa forma, refletida nesta, tanto
no aspeto semântico quanto no gramatical.
No que toca ao uso de saudade, essa
palavra pode aparecer tanto no singular quanto no plural, conservando o mesmo
sentido, o que ocorre também com parabém, pêsame, felicitação,
felicidade e outras palavras, que pouco a pouco passaram a ser usadas no
plural, muito embora o singular, com o mesmo sentido, também seja correto. Essa
palavra portuguesa "saudade" foi considerada o sétimo vocábulo
estrangeiro mais difícil de traduzir, segundo uma votação realizada por mil
linguistas, levada a cabo pela agência londrina de tradução e interpretação
Today Translations.
Por tudo que aqui se diz, o fato de uma
língua não ter palavra que, por si mesma, possa traduzir-se por “saudade”
não significa que o povo que a fala não conheça tal sentimento: tal conceito
pode ser, nessa língua ou em outras, expresso por mais de uma palavra. Além
disso, um povo pode conceber a ideia de “saudade” em combinação com
outro(s) sentimento(s), do que resulta novo conceito, veiculado por uma ou mais
palavras.
Diz o professor Napoleão Mendes de Almeida no
verbete “Saudade, saudades” de seu Dicionário de Questões Vernáculas: “a
capacidade de receber impressões é uma só na humanidade; não existe rigidez
filológica capaz de obumbrar o sentimento de uma nação. Cremos ser procedimento
psicofilológico correto este de aceitar em outros idiomas, ainda que não se
conheçam, a existência de equivalências a palavra e a expressões nossas; que
orgulho é este de achar que outros povos não vivem?”
Finaliza-se o artigo
falando sobre esse caráter único da palavra saudade e da impossibilidade de a
traduzir em qualquer outra língua. Para isso, transcreve-se, aqui, um excerto
da obra “A Saudade Brasileira”, de Osvaldo Orico (1948), que diz assim:
“Nenhuma palavra traduz satisfatoriamente o amálgama de sentimentos que é a
saudade. Seria preciso nos outros países a elaboração de um conceito que também
amalgamasse um mundo de sentimentos em apenas um termo”. Ficamos, pois, com a
nossa “saudade”!
> Luísa Galvão Lessa – acreana de Tarauacá, é pós-Doutora em
Lexicologia e Lexicografia pela Université de Montréal, Canadá; Doutora em
Língua Portuguesa pela Universidade Federal do Rio de Janeiro – UFRJ; Membro da
Academia Brasileira de Filologia; Membro da Academia Acreana de Letras;
Pesquisadora PVNS – CAPES.
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