Vássia Silveira
A ideia veio em
uma sexta-feira de friagem, em Rio Branco. Eu havia acabado de receber um
e-mail de Leila avisando que Luzinete tinha virado livro. Daí ao convite para a
entrevista e a resposta positiva da autora, foi um pulo. Mas como entrevistá-la
à distância – sem correr o risco de perder sua intensidade ou espontaneidade?
Encontrei a
resposta no conta-gotas do remédio à minha frente: era preciso ir devagar,
sentir aos poucos as palavras e os silêncios dessa escritora acreana que, aos
64 anos e do alto de seu apartamento em uma cidade baiana, nos brinda com
textos cada vez mais inteligentes e ácidos.
Propus-lhe, então,
enviar apenas uma pergunta: Quem é Leila Jalul? E foi a partir da resposta dada
que eu e Leila fomos construindo, no ciberespaço, a prosa que resultou nesta
entrevista. Uma experiência iniciada no
dia 8 de junho e encerrada, quase um mês depois, com um saldo de 69 e-mails,
oitenta cigarros e alguns goles de cerveja.
Leila Jalul, escritora, pintora e inquieta (Foto: arquivo pessoal) |
Quem é Leila
Jalul?
Esta eu respondo
por música: “Sou como um resto de bebida/ Que alguém jogou fora/E agora, farto
de mim, me esqueceu/ Eu fui mais uma taça desprezada/ Quis ser tudo e não fui
nada/Ninguém é mais triste do que eu”.
Isso me fez pensar
em outra composição cantada por Nora Rey: “Se o caminho da rua ainda é a porta/
Se você não me suporta/Eu sei sair por onde entrei”. Nos dois casos, Leila, o
que ou quem é esse outro que despreza?
No meu caso, sou
eu mesma. Vou te contar uma do Marmo (Antonio Marmo, ex-marido de Leila): Ele
estava procurando emprego e bateu na redação de um jornaleco, pior do que esses
daí, e foi direto para a sala de entrevista. Entrou uma moça, que se apresentou
como psicóloga, com uma página em branco e fez a seguinte pergunta, com
recomendação para ser respondida em apenas vinte linhas: Quem sou eu?
Marmo, prepotente
como ele só, tasca a resposta, mais ou menos assim: “Você, segundo me foi
comunicado, é uma psicóloga do setor de Recursos Humanos e está aqui para
entrevistar os que aqui estamos em busca de uma vaga de jornalista. Sua
pergunta me deixou perplexo e digo por quê: Como poderia, em apenas cinco
minutos de convivência, dizer quem é você? Do que vejo e sinto, você é uma
pessoa extremamente séria e disposta a cumprir seu papel de selecionadora dos
candidatos aqui presentes. Fisicamente, com todo o respeito, você é uma mulher
bonita e bastante simpática...”
E foi por aí...
Saiu da sala e desistiu do emprego.
Você teria feito
diferente?
Um pouco pior,
talvez!
Já que você tocou
no nome do Marmo, como foram ou são os amores de Leila?
Você quer dizer
dissabores? Os amores não foram. De bom, de ótimo, há um bem querer enorme
pelos netos, Hector e Catarina. Tomara que vingue! Tomara que cresça!
(Logo em seguida
recebo uma mensagem de Leila: “Ei, pareço amarga, não? Mas é verdade. E em outro
e-mail: “Reformulo: só se tem um grande amor. Quando acabou, acabou. Não há
mais que falar de amor”)
Por falar em
crescer: eu passei parte da infância frequentando sua casa e a imagem que
guardei é a de que era um ambiente criativo, revolucionário, inquieto. Era isso
mesmo?
Os tempos eram
inquietos. Eu tinha hormônios selvagens. Minha casa era o reflexo disso, do
tempo e dos hormônios.
Fale um pouco
dessa época...
Havia um acre
perdido dentro de um país fudido. Um acre sendo vendido aos pedaços para os
"paulistas" – como eram tratados os sulistas, de forma generalizada –
e uma trinca de jornalistas dispostos a ganhar uma guerra com um estilingue
chamado Varadouro. Um estilingue possante, diga-se. E que cumpriu seu papel.
Não fiz parte direta do Varadouro, mas fui, em algumas vezes, a braçal que
ajudava na encadernação e levava uns lanchinhos para os “cobras grandes”.
Havia medo,
principalmente. Depois havia uma universidade em gestação e muitos brutos no
comando. E mais medo. Muito medo. Mas havia, também, uns meninos enjoados e
valentões que pensavam grande (e pequeno, também).
Junte-se tudo isso
num caldeirão e pense nas borbulhas salpicando água quente para todos os lados.
E pense que o fogão, na maioria das vezes, era o lá de casa (você, mesmo criança,
entendia tudo. A partir das preocupações do seu pai, entendia e bem!).
Quem eram esses
meninos enjoados e valentões?
A começar pelos
“oficiais”, Binho e Marina (Marina Silva, ex-senadora e candidata à presidência
do Brasil). Havia o Toinho Alves, o chefe dos Libelúdicos. Não vou lembrar o
nome de todos, mas o Toinho é bem representativo. O bastante, eu diria!
Vou te contar uma
do Toinho: Quando ele era pequeno, numa noite de Natal, ganhou uma roupa de
soldado romano. No outro dia, doido para mostrar o presente, vestiu a roupa e
foi fazer inveja aos colegas de rua. Quase morreu de raiva! Os meninos da rua
estavam todos vestidos de caubóis, com revólveres de espoleta e dizendo: “Mãos ao
alto, não se movam!” Tudo no estilo Roy Rogers (Ator estadunidense de
faroeste)!
Mas hoje, reflito
que aquela roupa de soldado romano, com a reluzente espada e capacete dourado,
foi muito importante para a formação do Toinho. Ele jamais atiraria com balas.
Olhando hoje para
o passado, no que resultou aquele caldeirão de água quente?
No que deveria
resultar: os verdadeiros combatentes, para usar uma palavra da época, continuam
coerentes. E pobres! Outros venderam a alma.
Enquanto
movimento, o melhor resultado chegou com o reconhecimento de que a floresta é
importante. O mundo conheceu a luta do Chico; os "paulistas"
aposentaram os chicotes e os troncos.
Na universidade
mudaram os esquemas do CCC e do SNI, apareceram novas lideranças e, por um
período, ficou parecida com uma Instituição de Ensino Superior de verdade.
Honestamente,
minha análise é tão xucra, que me envergonha. Muitas coisas mudaram, isso é
certo. Muitas coisas, no entanto, devem ter piorado. O estado, ao que parece,
está à mercê dos grupos religiosos...
Sou bastante livre
para dizer o que penso, até por não ter religião. Se não bati continência para
os milicos, por que bateria para pastores? Acho que o inferno está cheio de
milicos danosos, políticos canastrões e de falsos pastores. E de analistas
xucros! (risos)
O Acre (e um tanto
do Brasil) não sabe o que deve ser um estado laico. Arrisco dizer que o Brasil
está equivocado em questão de fé e de política.
Falando em
religião, a Marina Silva, que você citou com uma das pessoas que compunha o
grupo de jovens enjoados e valentões, hoje faz parte da Igreja Evangélica. Qual
sua leitura a respeito?
Veja, Vássia, eu
não tenho nada contra religiões. Tenho contra espertalhões, principalmente das
igrejinhas e denominações que proliferam nos fundos de quintais e de
vinculações e vertentes duvidosas. Tenho tudo contra os exploradores de pessoas
ingênuas.
Religião, perfume,
roupas, músicas, escritores, maridos, maridas, são escolhas pessoais. Fiquei
realmente espantada quando soube que a Marina havia se tornado evangélica.
Talvez por deformação de entendimento de minha parte. Fiquei igualmente pasma
quando soube que a Jane Villas Boas também havia se convertido. Demorou um
tempo para que o meu tico e o meu teco entendessem as razões.
Nesse mesmo
espanto, quase estupor, acompanhei a rendição da Baby Consuelo. A louca
encontrou Jesus, não é espantoso?
Só que, com o
passar do tempo, a conversão de Marina me soou diferente. Todos nós sabemos que
ela é sobrevivente dos metais pesados e das cacetadas de malárias que contraiu
na sua vida seringueira. E que a ciência aceita a fé como instrumento de cura.
Então é isso aí: por questão de foro íntimo, por necessidade, Marina encontrou
Jesus e fez com ele um pacto. E está aí, para quem quiser ver.
A prova dos nove,
tanto faz ser Marina ou Dilma Rousseff, é não confundir Estado com opções
pessoais. Droga, aborto, casamento gay e outras tantas questões não devem e nem
podem ser resolvidas à luz da fé pessoal de quem quer que seja. A droga é. O
aborto é.
Você é acreana de
onde? Fale um pouco de sua família, sua infância.
Sou acreana de Rio
Branco. Filha de Zizinha (Azize) e de Manoelzinho Araújo, dois perdidos numa
noite suja. (Referência à peça de Plínio Marcos, encenada em 1966)
Vovô Ibrahim era o
manda-chuva e vó Otília uma megera adorável. Fui (in) feliz na medida justa. O
acre foi meu lar e meu cárcere.
O bonito e o feio,
o certo e o errado, enquanto lição, eu aprendi onde nasci e com quem me criou.
E ai de quem achar que não foi!
Retrato a carvão de Leila, feito por Jorge Rivasplata |
A referência à
peça de Plínio Marcos para retratar seus pais tem algum fundo de verdade? Ou é
uma ficção de Leila Jalul?
Não ao pé da
letra! Mas tudo a ver. Adoro o Plínio Marcos!
Mamãe era de
Umbanda e papai de Quimbanda. As bandas não batiam. Os dois eram filhos de
família e se uniram em família. Mas continuaram perdidos numa vida suja.
É uma ficção.
Quase! Se houve alguma coisa boa, com certeza, esconderam de mim. Papai era
muito sujo! (risos) E muito gente!
E o que isso
representou para sua infância? Como era a vida em família, os irmãos, seus
medos e sonhos?
Papai era
alcoólatra de renomada. Mamãe era triste. Também de renomada.
Papai era jogador
e “quengueiro” por vocação... Mamãe era escrava do pai dela.
Não lembro de
quase nada do núcleo. Vovô era o grande ditador: ditava normas e cagava regras.
Ao mesmo tempo em
que essa parafernália deu medo, também deu desejo de libertação. Fui pai e mãe
de meus irmãos mais novos. Ao todo éramos cinco. É que as duas mais velhas não
contavam. Papai fugia, voltava e emprenhava mamãe. E nasciam um após outro.
Cuidei de todos com certa dose de amor.
Fiquei cansada.
Não havia espaço para sonhos. Entrei de sola na vida para alimentar bocas. Não
houve retorno. E nem pedi.
De tudo isso
sobrou uma constatação: se ninguém morreu de fome, que sejam felizes. Muito
felizes. Sempre!
E parece que são.
Não sei avaliar a
infância. Nem a adolescência, nem a fase adulta. Estou melhor na velhice.
Sozinha e dona de mim.
E como foi em meio
a tudo isso, estudar e chegar aonde você chegou?
Foi difícil. Muito
difícil...
Aos cinco anos fui
para um internato em Sena Madureira. Completei seis anos neste internato e
ganhei de presente um copo de leite com Nescau. Mamãe não podia cuidar dos
filhos por causa do trabalho escravo na loja de vovô.
Aos 12 anos fui
ficar com uma irmã de mamãe que morava em Niterói. Nesta época, vivi terror e
preconceito.
Tudo foi lição,
entretanto. Aprendi a ser independente: Voltei para o Acre e, com atestado de
arrimo de família concedido pelo Dr. Lourival Marques, comecei a trabalhar como
aprendiz (de feiticeira).
Tentei estudar num
curso noturno e desisti. Só havia contabilidade e eu não tinha habilidade para
números e contas a pagar. Só voltei a estudar aos vinte e um anos, já casada e
grávida. Fiz um supletivo de vergonha, com aulas presenciais e excelentes
professores. Aos vinte e dois entrei no curso de Direito com excelente
classificação. No ano seguinte fiz vestibular para o curso de Letras, também
com excelente classificação.
Não dei conta de
fazer os dois cursos simultaneamente e fiquei só no curso de Direito. Mas não
parei por aí. Ainda fiz duas pós-graduações: Administração de Recursos Humanos
e Direito do Trabalho. Enquanto estudei, por sorte, fui muito focada e dei
conta do recado.
Você falou da loja
de seu avô, que loja era e onde ficava?
O comércio do meu
avô ficava ali na esquina da Floriano Peixoto com a Ruy Barbosa. Era um
comércio de secos e molhados; rendas francesas, calçados, brinquedos, armarinho
e tudo em geral. O nome da loja era casa Paraybana, em homenagem à segunda esposa.
Mamãe era
peça-chave do comércio. Vovô não falava
português. Ele conseguiu ser mais preguiçoso que eu. Além de preguiçoso era
irascível!
Fala um pouco
dessa experiência em Niterói... De que forma você viveu o terror e o
preconceito?
Em Niterói convivi
com a tia, o tio e dois filhos deles. Fui com a obrigação de ajudar nas tarefas
domésticas e estudar. Ajudei e estudei. Mas o tratamento era bastante
diferenciado entre nós, meninos.
Havia também uma
tia da minha mãe. A mulher era uma louca. As filhas da mulher eram loucas. Fui
bastante humilhada por causa do meu pai. Qualquer um se achava no direito de
cuspir na minha cara.
As histórias de
vida são engraçadas. Há pessoas que se vangloriam e ganham pontos com elas. Até
porque despertam piedade. Não é meu caso! Lavei panos de bunda, ouvi
impropérios, fui sugada na minha juventude. E daí? Contabilizei tudo de bom e
de ruim para buscar a liberdade.
Com quantos anos
você voltou para Rio Branco?
Antes de
completados os 14 anos. Cheguei pouco antes do Natal e já no dia 27 de dezembro
comecei a trabalhar.
Nesta época você
tinha os livros como companhia?
Sim. Quando saí da
casa da tia fui para o internato do colégio onde estudava (Colégio São José, em
Niterói). A biblioteca era enorme. Muitos livros do Monteiro Lobato. A coleção
Tesouros da Juventude e mais um tanto de títulos bons. Era um colégio de freiras
mineiras. Freiras de Manhuaçu e Manhumirim.
Havia ordem e
premiação por méritos. Comecei as minhas atividades tomando conta de uma
cadela, a Zoraide. Depois passei para a horta. Depois para a cozinha. Terminei
minha vida acadêmica na secretaria do colégio.
Este colégio, o
São José, das Sacramentinas de Nossa Senhora foi a minha base educacional. Foi
nele, também, que iniciei minha vida política (frustrada). Pertencia ao
movimento Juventude Estudantil Católica (JEC). Minha professora de inglês, a
Maria Helena, era comunista da hora.
Como leitora, que
livros marcaram mais a sua vida?
Tudo marcou.
Aprendi a ler. Às vezes não entendia o que lia, mas lia. Devorava livros, esta
é a verdade.
Ainda em Niterói
fiquei sabendo que mamãe estava passando necessidades. Para voltar para o Acre,
creia, mamãe vendeu um fogão esmaltado (movido a carvão). Voltei e comecei a
trabalhar. Depois de um tempo fiquei sócia do clube do livro. A estas alturas
tinha dinheiro para comprá-los.
Li com ansiedade.
Com sofreguidão, diria. Entre muitos, O
Retrato de Dorian Gray (Oscar Wilde), Ulisses (James Joyce). Li Os Miseráveis
(Victor Hugo). Li Dante, Tolstóí, Marquês de Sade. Li, li, li. À luz de velas,
de lamparina e de candeeiro. Entrei nos livros de bolso. Li Tex, li CorinTellado.
Um dos livros mais
marcantes foi a tragédia de Sacco e Vanzetti (contada por Katherine Anne Porter
em livro traduzido no Brasil por Sebastião Uchoa Leite). E Crime e Castigo.
Para uma delinquente juvenil, nada melhor. Também adorava os latinos: Vargas
Llhosa, (Carlos) Fuentes, (Manuel) Scorza e Gabo (Gabriel Garcia Marques). O
Clube do Livro era sortidão! Também fui sócia e limpadora de cadeiras do
Cineclube do Carlitinho da Núbia. Período de ouro, diria! (continua...)
N.E. Esta entrevista
foi realizada em 2012, originalmente para uma revista acreana que segue sendo
gestada. Dada a extensão da conversa, ela será publicada em partes no blog (ALMANACRE), de Elson Martins.
Um comentário:
Isaac, acabou de sair a segunda parte.
Postar um comentário