terça-feira, 8 de outubro de 2013

BIOPIRATARIA, CONHECIMENTO TRADICIONAL, PESQUISA CIENTÍFICA E JUSTIÇA: UMA QUESTÃO MAL RESOLVIDA

Evandro Ferreira


Para quem vive na Amazônia a palavra biopirataria é sinônimo de ‘roubo’, geralmente por parte de um estrangeiro, de recursos genéticos ou de conhecimentos tradicionais de comunidades locais com o fim de se obter vantagens financeiras. E o melhor exemplo de biopirataria praticada na Amazônia foi o contrabando pelos ingleses de sementes de seringueiras da Amazônia para cultivo em suas colônias asiáticas. Sob o ponto de vista acadêmico, entretanto, a definição de biopirataria é mais elaborada e envolve a retirada, sem anuência prévia para repartição de benefícios, de plantas, animais ou conhecimentos tradicionais detidos por comunidades nativas para se obter vantagens econômicas em outros locais.

O reconhecimento da biopirataria como algo condenável ocorreu na Convenção da Diversidade Biológica (CDB), realizada em paralelo à Conferência das Nações Unidas sobre o Meio Ambiente e o Desenvolvimento, no Rio de Janeiro em junho de 1992. A CDB entrou em vigor em dezembro de 1993 com a ratificação de 168 países e desde então a soberania nacional sobre a biodiversidade contida no território de cada país passou a ser reconhecida oficialmente. Antes dela, se considerava que ocorreram apenas ‘intercâmbios’ praticados por governantes e indivíduos e que a biodiversidade era patrimônio da humanidade. Com a ratificação da CDB, os países signatários reconheceram o status quo da distribuição de plantas agrícolas, ornamentais, ervas daninhas, animais de criação, e até mesmo as pragas e doenças que acometem esses organismos.

A entrada em vigor da CDB praticamente remeteu a biopirataria ao ostracismo visto que na atualidade a maioria das plantas e animais com potencial econômico já foi distribuída, tanto dentro como fora do Brasil. Como em um passe de mágica, a biopirataria deixou de ter importância no atual contexto econômico nacional e global, ficando relegada a um ou outro caso de comunidades indígenas que vez por outra apelam para a justiça reparar direitos sobre conhecimentos tradicionais supostamente usurpados. E mesmo assim algumas decisões não tem sido favoráveis, como foi o caso da recente sentença da justiça federal sobre a alegada biopirataria do conhecimento tradicional que os índios Ashaninkas do vale do Juruá alegavam ter sobre o uso da palmeira murmuru para a elaboração de produtos cosméticos.

Na ação os indígenas tentaram obter compensações financeiras do empresário que comprava os frutos da palmeira para extrair gordura vegetal, da empresa que comprava e distribuía a gordura para indústrias no Brasil e no exterior, e de uma conhecida indústria brasileira que usa a gordura do murmuru como matéria-prima para elaborar diversos produtos cosméticos. A negativa da justiça em reconhecer que ocorreu biopirataria no caso do murmuru se baseou no fato de publicações nacionais e internacionais, datadas desde a década de 20, conterem descrições das propriedades e composição do murmuru, com indicações de seu uso para a elaboração de sabonetes e xampus.

Tecnicamente a decisão da justiça foi correta, mas não se pode negar que, com certeza absoluta, foram comunidades indígenas, brasileiras ou estrangeiras, que descreveram aos autores das publicações citadas as propriedades e possibilidades de uso do murmuru. Provavelmente elas também levaram os pesquisadores para conhecer as plantas in loco, demonstraram as formas de uso e doaram frutos e outras partes da palmeira para que os ‘brancos’ pudessem voltar aos seus laboratórios e comprovassem o que os indígenas já conheciam há muitos anos. O que queremos deixar claro é que sem a ajuda de um conhecedor dos poderes e da localização geográfica das plantas nas florestas, a possibilidade de um pesquisador descobrir princípios ativos de grande potencial dentre estas plantas é quase nula.

A publicação dos resultados dos trabalhos de laboratório, usada pela justiça para denegar aos indígenas seu direito sobre o uso do murmuru para a elaboração de produtos cosméticos, era inevitável, pois publicar faz parte da rotina e obrigação desses brancos curiosos, conhecidos no mundo civilizado como pesquisadores. Uma pena que as comunidades indígenas – alheias ao poder da escrita – não puderam escrever, em períodos pré-colombianos, suas enciclopédias de conhecimentos culturais e naturais sobre as florestas em que viviam.

A formalização do conhecimento tradicional sobre as plantas do novo mundo é fato antigo e remonta às primeiras expedições de naturalistas a partir de 1700. Financiados pela nobreza e capitalistas europeus, os naturalistas não percorreram ‘florestas impenetráveis e selvagens’ das Américas apenas em busca da aventura e do desconhecido. Os interesses econômicos, científicos e culturais foram decisivos para as viagens de Alexandre Rodrigues Ferreira, Langsdorff, Martius, Bates, Humboldt, Ruiz e Pavón e tantos outros. Estes naturalistas e dezenas de pesquisadores que os seguiram posteriormente ‘descobriram’ e publicaram de forma sistemática as informações sobre usos de plantas e animais detidos por comunidades nativas das regiões que visitaram. Os livros que publicaram são a prova disso e para mostrar que não tinham inventado o que escreveram, a maioria deles indica o nome das tribos indígenas e as localidades onde viviam.

O precedente aberto pela recente decisão da justiça federal no Acre é perigoso, pois sugere que informações publicadas em livros e revistas são de mais valia que o conhecimento oral, passado de geração a geração. Por esse princípio, ‘acima de qualquer outro argumento, vale o que está escrito’.

A CDB confere direitos aos países e exorta os mesmos a garantir que o conhecimento tradicional seja reconhecido como propriedade intelectual para que as comunidades tradicionais, detentoras desses conhecimentos, possam participar da repartição de benefícios que poderão ser eventualmente gerados. Aparentemente, este incentivo deu início a uma nova corrida em busca de plantas e animais cujas utilidades para a humanidade são de grande valia para o avanço científico e econômico. Agora é possível fazer pesquisas nesse campo sem medo de praticar a condenável ‘biopirataria’. Infelizmente as coisas não estão caminhando nessa direção. Muito pelo contrário. As perspectivas não são das melhores.

Em primeiro lugar, para realizar o trabalho é preciso obter licenças e autorizações e isso exige uma paciência infinita, é extremamente burocrático e, em alguns casos, oneroso. Geralmente as aprovações nem sempre saem a tempo, pois a linha temporal da burocracia nunca está alinhada com o calendário dos indispensáveis trabalhos de campo. É importante diferenciar os pesquisadores envolvidos nesse tipo de trabalho. Os botânicos e etnobotânicos fazem o trabalho de campo, enquanto os químicos e os bioquímicos desenvolvem produtos em laboratórios. Os que sofrem para obter as licenças são os primeiros, responsáveis pelo estudo das plantas no campo e pela obtenção com os moradores locais das informações sobre o potencial das plantas e animais.

Em um segundo momento, os afortunados que conseguirem coletar os dados terão a difícil missão de publicar os mesmos sem prejudicar os fornecedores das informações – as comunidades ou pessoas detentoras dos conhecimentos tradicionais – e impedir que aproveitadores façam uso indevido das mesmas. É um dilema ético. Ao publicar as informações sobre o potencial medicinal de uma ou várias plantas eles tornam a informação de domínio público. E nesta condição, um terceiro pesquisador, sabendo do nome científico da planta, pode obtê-la em uma reserva particular, no Brasil ou no exterior, e então patentear o processo de isolamento do princípio ativo e eventualmente desenvolver um novo produto, ganhando assim um lucro monetário.

Assim, a culpa pela eventual falta de benefício para as comunidades que fornecerem informações iniciais sobre o potencial de plantas e animais não poderá recair sobre o pesquisador de campo. Publicar é uma exigência para a sua ascensão profissional, pois só assim ele ganha o reconhecimento que espera pela sua atuação. Se não publicar, não ganhará reconhecimento como cientista.

Como resolver esse dilema? Será que estamos vivenciando o ocaso das pesquisas sobre o conhecimento tradicional que as comunidades nativas detêm sobre plantas e animais de utilidade para a humanidade?


Credito da imagem: Dr. Richard Schultes, considerado o pai da Etnobotânica moderna (Wikipedia)


* Evandro Ferreira é acreano, nascido em Rio Branco, pesquisador do INPA-AC e do Parque Zoobotânico da UFAC. Mestrado em Botânica no Lehman College, New York, USA, e Ph.D. em Botânica Sistemática pela City University of New York (CUNY) & The New York Botanical Garden (NYBG).

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Moacir Haverroth, pesquisador da Embrapa-Acre, acrescenta:
Da apresentação do livro organizado por mim "Etnobiologia e Saúde de Povos Indígenas", Nupeea, Recife, 2013:
"(...) Um aspecto que interfere fortemente em projetos que têm a pesquisa etnobiológica como base, nos últimos anos, é a questão da legislação referente ao acesso aos Recursos Genéticos (RG) e aos Conhecimentos Tradicionais Associados (CTA) aos RG. A Medida Provisória (MP) 2.186/2001 continua vigente. Com a criação do Conselho Nacional do Patrimônio Genético (CGEN), previsto pela MP 2.186, uma série de Resoluções passou a normatizar as pesquisas que implicam em acesso ao Patrimônio Genético (PG)e/ou ao Conhecimento Tradicional Associado (CTA), num processo de regulamentação do que previa a MP. Essa nova base legal tem sua raiz na Convenção da Biodiversidade do Rio de Janeiro, em 1992, e outros tratados e acordos internacionais. Um dos objetivos seria proteger o PG das nações ricas em biodiversidade e o CTA dos povos indígenas e tradicionais que habitam esses países e que, em tese, guardam conhecimentos particulares sobre essa biodiversidade e seu uso, evitando, assim a chamada “biopirataria”. Por outro lado, os cientistas e pesquisadores ficaram sujeitos a essa legislação, a qual, por princípio, é indiscutivelmente justa. Entretanto, o grande problema passou a ser a forma como a MP 2.186 passou a ser aplicada e regulamentada, criando uma completa falta de sincronia entre prazos de execução dos projetos de pesquisa e o tempo de espera pelas autorizações de pesquisa que envolvem acesso ao PG e/ou CTA, as quais são concedidas pelo CGEN e, em alguns casos, por outras instituições credenciadas por este. Com isso, muitas pesquisas em etnobiologia estão deixando de ser feitas, outras estão ficando com prazos limitados para execução, inclusive com perdas de recursos. No caso de povos indígenas, há outras exigências legais para ingresso nas Terras Indígenas, cuja autorização depende da Funai. Quando em área de fronteira nacional, o pesquisador ainda depende de uma autorização do Ministério da Defesa. Certas pesquisas na área de saúde, também requerem autorizações por Comitês de Ética locais e nacional. Nesses casos todos, o problema não seria a legislação em si, mas a forma como ela vem sendo aplicada e o tempo de espera pelas autorizações.
Portanto, para chegarmos a uma publicação como esta, a despeito de suas limitações, muito trabalho houve antes por parte de cada autor. Da mesma forma, muita contribuição de pessoas e grupos inteiros que cederam seu tempo, paciência e sabedoria para que esses conhecimentos pudessem ser registrados, analisados, sistematizados e escritos em forma de capítulo de livro. (...)."

Um comentário:

Moacir Haverroth disse...

Da apresentação do livro organizado por mim "Etnobiologia e Saúde de Povos Indígenas", Nupeea, Recife, 2013:
"(...)Um aspecto que interfere fortemente em projetos que têm a pesquisa etnobiológica como base, nos últimos anos, é a questão da legislação referente ao acesso aos Recursos Genéticos (RG) e aos Conhecimentos Tradicionais Associados (CTA) aos RG. A Medida Provisória (MP) 2.186/2001 continua vigente. Com a criação do Conselho Nacional do Patrimônio Genético (CGEN), previsto pela MP 2.186, uma série de Resoluções passou a normatizar as pesquisas que implicam em acesso ao Patrimônio Genético (PG)e/ou ao Conhecimento Tradicional Associado (CTA), num processo de regulamentação do que previa a MP. Essa nova base legal tem sua raiz na Convenção da Biodiversidade do Rio de Janeiro, em 1992, e outros tratados e acordos internacionais. Um dos objetivos seria proteger o PG das nações ricas em biodiversidade e o CTA dos povos indígenas e tradicionais que habitam esses países e que, em tese, guardam conhecimentos particulares sobre essa biodiversidade e seu uso, evitando, assim a chamada “biopirataria”. Por outro lado, os cientistas e pesquisadores ficaram sujeitos a essa legislação, a qual, por princípio, é indiscutivelmente justa. Entretanto, o grande problema passou a ser a forma como a MP 2.186 passou a ser aplicada e regulamentada, criando uma completa falta de sincronia entre prazos de execução dos projetos de pesquisa e o tempo de espera pelas autorizações de pesquisa que envolvem acesso ao PG e/ou CTA, as quais são concedidas pelo CGEN e, em alguns casos, por outras instituições credenciadas por este. Com isso, muitas pesquisas em etnobiologia estão deixando de ser feitas, outras estão ficando com prazos limitados para execução, inclusive com perdas de recursos. No caso de povos indígenas, há outras exigências legais para ingresso nas Terras Indígenas, cuja autorização depende da Funai. Quando em área de fronteira nacional, o pesquisador ainda depende de uma autorização do Ministério da Defesa. Certas pesquisas na área de saúde, também requerem autorizações por Comitês de Ética locais e nacional. Nesses casos todos, o problema não seria a legislação em si, mas a forma como ela vem sendo aplicada e o tempo de espera pelas autorizações.
Portanto, para chegarmos a uma publicação como esta, a despeito de suas limitações, muito trabalho houve antes por parte de cada autor. Da mesma forma, muita contribuição de pessoas e grupos inteiros que cederam seu tempo, paciência e sabedoria para que esses conhecimentos pudessem ser registrados, analisados, sistematizados e escritos em forma de capítulo de livro. (...)."