quarta-feira, 16 de outubro de 2013

ESTRANGEIRO, ESTRANGEIRO

Jorge de Lima (1893-1953)

Para José Osório de Oliveira


E quando os assírios acabaram de brigar com os caldeus enterraram os mortos;
e outros povos começaram a brigar pela posse da terra;
mas antes do dia findar, filisteus, hebreus, persas, gregos, árias, romanos, africanos, russos, espanhóis, chineses, japoneses,
brigaram, brigaram, brigaram.
E houve paz para enterrar os mortos.
E nem o Sinédrio, nem os Conselhos, nem a Liga das Nações,
nada fizeram, nada resolveram, nada adiantaram.
E houve paz para enterrar as ligas.
E rebentaram na carcaça velha do mundo cinquenta revoluções simultâneas
para salvar o homem e garantir a paz.
E deram inúmeros prêmios nóbeis a vários chanceleres e cantaram hinos a várias democracias,
a vários grandes condutores;
e as polícias continuaram a espancar os sonhadores;
e os generais ganharam grandes soldos para defender as pátrias,
e houve bombas em várias partes do globo;
e ainda ontem, num morro do mundo,
a Tísica devorou várias moças,
e os vermes continuam a se alimentar de crianças órfãs;
ricos, pobres, moços e velhos se enforcaram nas árvores.
A massa tem fome, o uivo da humanidade é mais doloroso de noite.
A superfície da terra continua do tamanho de uma cova.
Estrangeiro que passais,
sois tão novo e sois tão velho quanto eu sou.
A mesma inquietação e a mesma decepção nos arrasam os olhos.
Estrangeiro que passais, quantas vezes o chão que pisamos já mudou?
O senhor comissário já nos deu licença
de olhar as nuvens e aspirar a brisa de Deus?
E para olhar o próximo eclipse arranjaremos bilhetes com o chefe?
Estrangeiro amigo, escrevamos para os nossos bisnetos fictícios,
a história eterna do homem decaído e do mundo sem jeito.
Estrangeiro, vós me estendeis vossos braços e somos como velhos amigos passeando no cais,
e olhando no mar - a vela, a asa, a onda e as coisas fugitivas.
Estrangeiro, estrangeiro, as nossas nações, apesar de nossa amizade,
continuam isoladas e inimigas como em Mesopotâmia;
e ainda há entre elas raças irreconciliáveis.
Estrangeiro, estrangeiro, eu sou dos vossos.
E, se quereis ser dos meus, aceitai
que só a Igreja de Cristo  mais forte que a lei de gravidade
continua a enterrar os mortos neste planeta errado.


LIMA, Jorge de. Anunciação e encontro de Mira-Celi. Rio de Janeiro: Record, 2006. p.193-194

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