Trecho de A REPRESA (1942), de Océlio de
Medeiros, em que narra, com todo aquele seu estilo irreverente e recheado de
humor, os primórdios da Academia Acreana de Letras.
Muita coisa houve em Rio Branco durante os
últimos meses. Preto Limão, o velho Preto Limão, que andava cambaleando bêbado
pelas ruas e que as mães chamavam para que levasse num saco os filhos
malouvidos, morreu num banco de Praça. Morreu feliz, sem saber porque tinha
nascido, sob o frio da madrugada e a mortalha da noite estrelada. A lua ria-se
dele lá de cima, no seu arco de luz, como na bandeira turca. O Eliezer e o
Armando Braga, os únicos boêmios, foram fazer uma serenata na madrugada do
outro dia, bebendo e cantando modinhas, diante da cova do Preto Limão. Quem passasse
a essa hora, haveria de ouvir, como a voz do luar, aquela canção de saudade,
acordando a alma do Preto Limão.
Preto Limão morreu. Casou-se a Osvaldina,
filha do seu Ângelo, com o Joca, filho do Pereira, o par mais falado de Rio
Branco. Suicidou-se o Pedro Morais num domingo. Nessa tarde não tocou a
retreta. Nasceu na segunda quinzena a filha do sírio Fecuri. A Marina foi
deflorada. A Lindalva arranjou um novo amante. Mas o acontecimento principal
foi a ideia de o Felipinho fundar a Academia Acreana de Letras. Só a existência
do poeta Juvêncio justificava a existência da Academia.
Felipinho rsolveu ir pedir o apoio do
Juvêncio. O poeta já namora as glórias acadêmicas. O Felipinho botou a roupa
que usava sempre quando ia empreender alguma coisa. Era um fato amarelo, de
linho barato comprado no Safa, que harmonizava perfeitamente com a pele
palustre. O Pai Irineu, chefe da uascar,
disse a Felipinho que o amarelo era a cor que lhe daria êxito em tudo.
O “Hotel Madri”, parte integrante das
tradições de Rio Branco, fica do lado da Perdição. Um anúncio novo, afixado
numa das prateleiras, melhor o define: hotel familiar... Outro, escrito em
letras vermelhas, o completa: “Só é permitida a entrada de mulheres depois das
dez horas...” E ainda há um na parede do mictório, com esses caracteres
reservados: “Por favor, não jogue o algodão na bacia...”
O Felipinho, sacudindo com a costa das mãos o
pó das ruas que sujava o seu fato canário, entrou por uma ala de bilhares,
cumprimentando academicamente um antigo contrabandista de cocaína. No quarto, o
último do corredor, o poeta, sentado numa rede de varandas vermelhas,
continuava o primeiro e o único pifão de sua vida, começado aos 18 anos, quando
aluno faltoso da Faculdade de Direito do Recife, onde se bacharelou, vindo daí
para o Acre afim de ser promotor público de Abunã. A sua voz arrastada
recitava:
– Bendita seja, preguiça amada,
tu que não queres que eu me ocupe em nada!
– Teu filho é belo, é forte, é louro?
Mais uma rês votada ao matadouro!...
O ambiente do cubículo, que Amadeu Aguiar nos
seus artigos chamava de Tebaida, causou um asco secreto em Felipinho. Uma cama
de casal, velha e imunda, mostrava à guisa de lençol uma riquíssima pele de
vicunha, que tinha sido presente de rico ganadeiro da Bolívia. Uma cômoda
tosca, com coluna de tripé, servia de pedestal ao busto do cantor das Acreanas,
feito em barro bruto pelo seu colega de letras e de farras Amanajós Santiago. No
chão, como cuspidelas de mulher grávida, várias pilhas de livros se espalhavam.
Em cima de uma mesinha, o retrato da colação de grau, de borla e capelo, caindo
a cabeça e o bigode sobre o punho da mão direita fechad, numa atitude de
pensador profundo. Dispostos sobre um pano de rendas que nunca tinha sido
lavado, viam-se inúmeros postais de mulheres nuas. Na parede, repousando sobre
dois pregos, o espadim com que Juvêncio namorava a futura Academia Acreana de
Letras: uma lâmina de pau lavrado, feita talvez de caixão de cebolas, com uma
copa de couro de boi...
Felipinho tornou-se íntimo, puxando uma cadeira
furada. Olhou para um dos travesseiros da cama. Viu lá a boneca de pano, dessas
que, de passagem para o Rio, se compram em Fortaleza.
– Que história é essa, Juvêncio? Então depois
de velho você deu para brincar com boneca?
– Que nada, rapaz! Essa boneca é a presença,
é a saudade de Laura! – suspirou o Juvêncio, num sorriso safado em que exibia
as suas gengivas desdentadas.
– Mas quem é essa Laura de que você tanto
fala? perguntou o Felipinho.
– É essa monstruosidade que está aí! respondeu
o poeta, apontando para um retrato em que se via uma cara de quitandeira, gorda
como um balaio. Ela hoje está velha, – desculpou-se o Juvêncio – está acabada,
está como eu... Mas debaixo de toda essa gordura, de toda essa feiura e de toda
essa velhice, eu sinto a Laura de ontem, aquela Laura que era três vezes
mulher!...
Felipinho ainda deu uma prosinha. Juvêncio mostrou-lhe
as últimas produções. Versos em que o álcool trabalhava tanto como o talento. Os
nomes mais imorais, como pinceladas de piche, cortavam a conversa. Felipinho aproveitou
a oportunidade:
– A propósito, Juvêncio. Venho pedir o seu
apoio para a fundação da nossa “Ad immortalitatemzinha”... Você já está para
morrer e precisa entrar na Academia...
– Eu, morrer?! Engana-se quem pensa que eu depois de morrer queira
entrar na Academia ou no céu! Jamais suportaria o ambiente chato do Céu, com S.
Pedro fazendo rabujices e doze mil virgens entoando cânticos sacros. Jamais!...
Quando morrer, quero ir é para o Inferno! Isto sim! Aí encontrarei todas as
almas devassas, todas as pecadoras, todas as mulheres perdidas, todas as
prostitutas do mundo! E é aí que eu vou gozar de verdade!...
A figura de Juvêncio fez o Felipinho
experimentar a emoção do romancista que encontra um tipo. Baixo e magrelo,
desdentado e franzino, talvez não fosse capaz de resistir ao discurso do Prof.
Cazuza, se esse fosse o escolhido para saudá-lo... Sardas e pinguinhos azuis
salpicavam-lhe o rosto encarquilhado. E, pelo canto dos lábios sórdidos,
escorriam, como um arco de ferro incandescente, as pontas ruivas do bigode...
Amadeu Aguiar escreveu nesse dia na primeira
página do “O Acre” um esboço crítico
biográfico, onde dizia que o poeta Juvêncio se deixara levar pela sedução
dos barrancos do Acre. “Remanescente de maior talento de uma geração, – afirmou
ele – plagiou a glória das cigarras, sempre cantando, e viveu o destino dos
copos de botequim, sempre se enchendo de álcool, numa bebedeira que só
terminará com a morte. Admiravelmente filósofo no seu lirismo, inspirado sempre
no ceticismo de uma região onde nem a própria terra inda se fixou, anda agora
no refúgio do seu passado e na degradação do seu talento... Só teve, na vida,
dois amigos: um rato branco, que conserva com o maior carinho numa gaiola de
arame, e o Coronel Epaminondas Martins. Seu maior desejo é, quando essas duas
criaturas morrerem, enterrá-las lado a lado. E haverá de escrever, na lápide da
sepultura do rato, o seguinte epitáfio: aqui jaz o homem que não me furtou...”
O Juvêncio recitou alguns dos últimos sonetos
de sua lavra. As palavras, ao sairem da bocarra desdentada, adquiriam uma
tonalidade cava, como se viessem do fundo de uma montanha. No fecho de outro
colocava toda a sua emoção de ébrio. E, depois da última rima, se exaltava:
– Que tal Felipinho?! Formidável, não! Sim,
formidável! Então este último versp abafa! Poesia é isso, meu amigo! É
filosofia, é calor de gênio!...
O Felipinho sacudia a cabeça, como um
papavento. Talvez estivesse com o pensamento longe, numa carne seca do jantar,
quando o poeta recitava. Jamais deixava de elogiar, com a sua vozinha fanhosa e
inspiradora de eterna piedade:
– É só você quem pode fazer essas belezas,
meu grande Juvêncio. Só você e nem mais ninguém. O Mário fica longe, muito
longe com os “Painéis da Nossa Terra”...
O Juvêncio foi remexer uma gaveta velha. De dentro
tirou uma folha amassada de papel de carta, com alguns borrões de tinta e duas
manchas de vômito.
– Sabe que estou me dedicando ao
teatro-charada? É uma nova invenção literária! Ouve só esta peça-síntese, conforme a batizou o
Mário. O cenário é uma sacristia. Os personagens são Deus Nosso Senhor, o
Professor Pangloss e Jesus Cristo. É antes de cair o pano.
Deus Nosso
Senhor:
– Como vai a terra, Pangloss? Que me conta o teu espírito?
Pangloss,
coçando a careca:
– Quem afirma que tudo vai bem diz apenas uma asneira, Senhor! É preciso
afirmar que tudo vai pelo melhor!
Deus Nosso
Senhor
a Jesus Cristo: – Então, Meu Filho! Prepare-se
para voltar novamente à terra! O planeta está abandonado até agora!
Jesus Cristo,
de joelhos:
– Sim, Meu Pai! Irei novamente! Mas, por piedade, não me deixe nascer no
Acre!...
O Felipinho estourou na gargalhada da sua
vida.
– Está formidável, simplesmente formidável! Está
até genial! Ser gênio é dizer coisas que só um entende! Está formidável...
Felipinho entrou no assunto. O Juvêncio achou
ótimo a ideia. Olhou para o espadim de pau. Apresentou uma condição:
– Pode contar comigo. Mas na condição de eu
não ser apontado como o responsável pela fundação do que o Mário chamará de
sodalício... E nem que eu seja escolhido para fazer o discurso de instalação...
MEDEIROS,
Océlio de. A Represa (romance da Amazônia). Rio de Janeiro: Irmãos Pongetti Editores, 1942. p.165-174
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