quarta-feira, 2 de julho de 2014

PADRE JOSÉ E AS MENTIRAS REGIONAIS

MENTIRAS REGIONAIS
José Carneiro de Lima (1912-199?)


Nossos seringueiros gostam muito de piadas e de mentiras gaiatas. Por exemplo, outro dia levaram para o hospital da cidade de Xapuri uma mulher com tanta febre, que, mesmo deitada em uma rede, ela ia fazendo murchar o mato por onde passava. No hospital, queimou o colchão da cama e ficou no chão, porque nem cama nem rede aguentavam o calor da febre.

Caçando de noite, deu um vento tão forte que entortou a luz da lanterna e o veado foi embora, porque também o tiro foi desviado.

Caçador caiu em um lago, usava óculos, boiou sem eles, mas um pescador dias depois pegou enorme traíra com óculos na cara.

Mulher é como lua... quando é nova dá impaciência.
                 – crescente, satisfação,
                 – cheia, aborrecimentos,
                 – minguante, desilusão.

Saudade é um parafuso
que dentro da rosca, cai e
só entra se for torcendo,
porque batendo não vai.
Quando enferruja dentro,
nem distorcendo sai.

Encontrei estes versos na casa de um velho cearense e creio que ele trouxe de lá de nossa terra.

Outra estória deste gênero é a de um caçador que estava na espera e uma cotia, chegando perto, começou a roer um ouriço de castanha para comer as amêndoas; mas o caçador, de vez em quando, ouvia o chiado e uma fumacinha subir da beira do igarapé: é que como o ouriço era duro demais, os dentes da cotia ficavam encarnados pela alta temperatura e, então, ela tinha de correr para o igarapé para esfriar os dentinhos na água; daí, o chiado e a fumaça...!

Agora, vejam esta outra, também, sobre cotias: em um seringal, dez cotias, carregavam toda a castanha e davam prejuízo total ao patrão. Perguntei a um seringueiro, como isto era possível! “É sim, cada uma leva um ouriço no dente, dois debaixo do sovaco e vai chutando mais dois: são dez de cada vez ou cinquenta de cada viagem das dez cotias....!”.

Em outro seringal, havia uma paca endiabrada. Ninguém conseguia pegá-la, até que uns índios descobriram que ela tinha oito pernas: quatro embaixo e quatro em cima. Assim, quando era perseguida por um cachorro, ela corria meia hora, depois, então, se virava e corria mais meia hora com as outras pernas, de modo que era impossível pegá-la. Mas, um cearense inteligente achou um meio: pegou dois cachorros e amarrou um nas costas do outro. Soltou-os na mata e duas horas depois a paca estava na panela. Pegaram!

Em Ji-Paraná, um seringueiro levantou-se às duas da madrugada para cortar seringa mas, como não tinha café, foi ao terreiro da barraca e viu que no rio ia passando uma cobra grande, porém não ligou. Tirou lenha; torrou café; pilou; peneirou; fez o café; cozinhou macaxeira (aipim) e, às sete horas e meia da manhã, quando ia entrando na mata, lembrou de olhar para o rio. O rabo da cobra ia terminando de passar...

Outro caso: um explorador da região com 12 índios, cinco burros e os utensílios para uma longa viagem, deparou-se com uma árvore gigantesca, caída na mata. Procura daqui, procura dali, não conseguia passar nem saber onde estava os galhos ou o tronco. Mandou, então, 3 índios para cada lado, fazendo picadas, mas eles voltaram três dias depois não encontrando tronco nem galhos. Então o homem resolveu saber, pelo menos, que árvore era aquela. Fez uma picada de cem degraus, apanhou uma machadinha e subiu. Lá em cima, começou a tirar um pedaço da casca de uns dois metros de comprimento, quando nisto começou a sair sangue dos lados; só aí então, ele viu que estava tirando a escama de uma cobra...

Um seringueiro estava na “paquera” de uma caça apareceu uma alma, com aspecto horrível. Não teve dúvidas: meteu-lhe chumbo grosso. Depois desceu e pôde constatar que acertara o tiro, pois havia bastante sangue no chão... Porém, dias depois, morria o marido da vizinha, com um susto que levara nas matas...!


LIMA, Padre José Carneiro de. Folclore Acreano. Brasília: Gráfica do Senado, 1987. p.71-73
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Padre José Carneiro de Lima, registrado Maurício, nasceu em 23 de março de 1912, em Quixadá, estado do Ceará. Chegou ao Acre aos oito anos de idade, trazido por seus pais Telmino Julião de Lima e Benvinda Cândida de Lima, sendo o 13o dos 16 filhos do casal. Padre José, junto com seu irmão Padre Peregrino, foram os primeiros brasileiros a ingressarem na Ordem dos Servos de Maria, e depois de ordenados na Itália, retornaram, depois de breve passagem por Santa Catarina, ao Acre, onde exerceram o ministério sacerdotal até o fim de suas vidas. Os dois, no imaginário popular, acabaram se tornando lenda, sobretudo, o Padre José, por sua figura irreverente e suas histórias fantásticas. Padre José foi retratado na minissérie global “Amazônia: de Galvez a Chico Mendes”, de Glória Perez. Ambos faleceram na década de noventa. 

Um comentário:

Ricardo Julião de Matos Lima disse...

Sou bisneto de um dos irmãos do Padre José e, pelo o que vi até agora, ele parecia ser alguém muito divertido e uma pessoa boa. O que eu não daria para conhecer ele e o Liminha.