Isaac Melo
A moça, um tanto
simpática, foi nos conduzindo por entre as catacumbas terra abaixo, enquanto o
clima escaldante de Roma cedia lugar a uma temperatura enregelante, depois de
uma longa caminhada pela estreita e milenar via Appia Antica.
À medida que avançávamos por entre túneis estreitos e labirintosos, ela parava
e nos assinalava uma ou outra tumba, acentuando a diferença conforme as
condições sócio-econômicas de cada um, ou se era pagã ou cristã. Ainda estão lá as lâmpadas que alumiavam as tumbas, as ânforas de azeite, as pinturas, os
símbolos sobrevivendo às mãos esfaimadas do tempo.
Via Appia Antica |
Explicações para
cá. Explicações para lá. Por mais que me agradassem, não era o ponto de vista
histórico, nem arqueológico que me impulsionava naquele momento, e sim o da fé.
Era a história de um soldado romano do II século que me atraía. Subimos uma pequena
escada que dava para um salão mais amplo, porém sem nenhum ornamento. Sob um
rústico altar, sustentado por quatro colunas, se encontrava um sarcófago de
pedra. Na fadiga de quem já contou tal história centenas de vezes a centenas de
peregrinos e turistas, a moça anunciou, sem muito entusiasmo, que ali estavam os
restos mortais do mártir Sebastião.
Num deslize da guia, pois é proibido, conseguir sacar esta fotografia, tendo ao fundo, sob o altar, o sarcófago com os restos mortais do mártir Sebastião. |
Não se sabe com
precisão a história de São Sebastião.
Também é difícil separar os fatos históricos das lendas, que, com o decorrer
dos séculos, se propagaram. O certo é que desde cedo o local se tornou um ponto
de convergência e peregrinação de inúmeros cristãos, e que se estende até os
tempos hodiernos. São os mistérios da fé. Talvez kierkegaard tenha razão, a fé
é um salto no escuro. É a coragem de se lançar, mesmo não tendo certeza alguma.
E, paradoxalmente, nessa ausência de certeza racional é que consistiria a
salvação.
Basílica de São Sebastião ad catacumbas. A Basílica está erguida sobre as catacumbas. |
Duramos pouco
junto à tumba do santo que um dia fora traspassado por flechas por se confessar
cristão. Continuamos a percorrer aquelas passagens estreitas e pálidas. Durante
os primeiros séculos, o cristianismo era uma religião ilegal e perseguida. As
frias catacumbas serviam como lugar seguro para os cristãos se reunirem e
celebrarem. Aí nas paredes e em lascas de pedras estão inúmeros escritos desse
tempo, sobretudo, referindo-se a Pedro e Paulo, cujas relíquias foram trazidas
para essas catacumbas, por volta do ano 258, para serem protegidas da invasão
dos sarracenos.
Uma das flechas, segundo a Tradição, utilizada no martírio de Sebastião. |
Catacumba é
um termo cunhado a partir dessa tumba de São Sebastião ad catacumbas,
tido como uma das tumbas mais conhecidas e visitadas de Roma. As catacumbas
eram cemitérios subterrâneos utilizados pelos primeiros cristãos antes do Edito
de Milão, a partir do qual o Império Romano se manteria neutro em relação ao
credo religioso. Com a passar dos tempos catacumbas passou a designar todos os
cemitérios cristãos subterrâneos. O aspecto rude e sem muita beleza no interior
das tumbas vem da concepção cristã da vida eterna após a morte. Esta seria
apenas uma passagem. A tumba servia apenas de descanso ao corpo, à matéria,
sendo restabelecido e plenificado na ressurreição, a exemplo do próprio Cristo.
Minha admiração
pelo mártir Sebastião se intensificou a partir de uma pequena comunidade
católica encravada em plena selva amazônica. O seringal Capela, no Rio Muru,
distante um dia de barco de Tarauacá, realiza a cada 20 de janeiro, anualmente,
o novenário dedicado ao ex-soldado romano. Sobretudo nas últimas três noites o
número de peregrinos dobra na pequena localidade. Nesse longínquo ermo, a
milhares e milhares de quilômetros de onde vivera o santo, Sebastião revive no
pensamento daquela gente simples, que talvez não saiba muita coisa dele. Aí
acorrem não pelo santo em si, mas, em sentido mais profundo, por aquele anseio
maior que reside no mais profundo de cada um, Deus.
Estátua em mármore de São Sebastião (1672), obra do escultor Giuseppe Giorgetti. Basílica São Sebastião ad catacumbas. |
A Igreja nos
apresenta os santos como fonte de inspiração, um sinal de que a mensagem de
Cristo pode ser vivida, apesar das fragilidades humanas, podendo estas também
ser superadas. Atualmente vivemos uma inversão, em que a inspiração, no sentido
ético, foi sobrepujada pela intercessão. Fazer milagre parece ser a única razão
dos santos. Sendo que o verdadeiro milagre talvez se iniciasse com uma sincera
mudança interior do nosso jeito de ser e de se relacionar com o que vemos e o
que não vemos. Infelizmente abundam os vendedores do templo, os milagreiros,
que barateiam a graça e a negociam como se Deus fosse um mero joguete ao nosso
bel prazer. Por outro lado, os profetas escasseiam, enquanto padres-shows
abundam entre plumas e paetês, a alimentar o povo com pão e circo, em vez de
oferecer e propiciar o verdadeiro Pão da Vida.
Sou grato às pessoas
do Seringal Capela, pois o meu rosto é semelhante aos seus. Sou grato ao mártir
Sebastião. O homem antes do santo. O santo porque profundamente viveu sua
humanidade. Humano é o que sou. Ser humano é o que me ensina Sebastião. Por me
reconhecer plenamente humano é que o divino a mim começa a se desvelar. O amor
de Deus nos vem não porque somos santos. O amor de Deus nos envolve porque
antes somos humanos. A grandeza humana é reconhecer sua pequenez. Só quem é
pequeno pode caber no coração de Deus.
> Imagens de arquivo pessoal.
> Texto publicado em 5/7/2012.
3 comentários:
que extraordinária viagem espiritual e geográfica real na profunda espiritualidade
tomei a liberdade de publicar no meu blog e no ENTRE-TEXTOS
Muito bom o texto Isaac.
Há muita coisa a ser mudada em muitas coisas.
abç
Postar um comentário