segunda-feira, 21 de outubro de 2024

ADONAI DE MEDEIROS: Jamachi: coisas da Amazônia

Jamachi: coisas da Amazônia, 1934.

 

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UMA EXPLICAÇÃO

Não sou candidato à Academia de Letras. Tampouco ao prêmio Nobel. Nem quero ser membro de Juri... Os contos são meus. Assunto da minha terra – o Amazonas. É regionalismo puro. Alguma fantasia. Quem achar que poderia sair melhor tem um recurso: as livrarias vendem papel, tinta, lápis, máquinas de escrever e outros artigos de que se servem os escritores sente à mesa e escreva... Se não tiver dinheiro para comprar o material suficiente – exceto a inteligência – venha a mim que eu forneço. Contanto que venha para a liça. Se não agradarem ao leitor, tenho a dizer que os contos são filhos desta coruja que sou eu. Eu os achei bons, ótimos mesmos. Por mim, estou contente. Sou muito egoísta.

 

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AS POMAS DE IACI

Adonai de Medeiros

 

Logo que a montaria encalhou na praia, à entrada do lago, arregaçamos as calças e nos dirigimos ao velho caboclo que recolhia num paneiro as raízes de macaxeira.

Estávamos dentro do grande lago em Manacapuru e tratávamos de aproveitar aquele chorrilho de feriados e dias santos que os primeiros dias de Novembro nos concediam, procurando passá-los da melhor maneira. Uma digressão pelas casas à margem do enorme lago era agradável e, por isso, pedimos uma canoa por empréstimo ao coronel Juvêncio, dono do barracão onde nos hospedamos e nos metemos à folia.

Éramos ao todo cinco: o Pimenta, que a par de boa voz tocava magistralmente o cavaquinho; o Salles, que reunia ao vezo de exímio bebedor de “Janauacá” o de bom violão; o Almeida, emérito no fazer soar o caracaxá; o Oliveira, que se fizera notável na harmônica, e eu, que brilhava por não saber nem cantar nem tocar, acompanhando-os nas repetidas saudações às garrafas da famosa aguardente amazonense.

Ao nosso cumprimento o caboclo respondeu com um “bom dia” acompanhado de um gesto à aba do chapéu de palha e, amarrando com umas embiras as bordas do paneiro, levantou-o ao ombro e conduziu-o para a barraca na terra firme. Acompanhamo-lo e, gente da cidade, curiosa, crivamo-lo de perguntas sobre o lugar e suas lendas. Ele, vergado ao peso do paneiro, cuspinhando para os lados, remexendo na boca a masca de fumo, respondia à nossa fala, com aquele jeito peculiar de quem envelheceu ao contato da natureza selvagem e maravilhosa do vale.

Entrando na tosca residência, toda de palha, ordenou à mulher nos servisse café batido ao pilão, e enquanto o saboreávamos, aromatizado com cravo, ele, cedendo à nossa insistência, começou a narrar uma das muitas lendas que os seus ancestrais lhe legaram:

– Foi ali, moços, no outro lado, e há muito que se passou, foi naquela margem onde está a tapera do Pedro Jerômo, aquele que matou a mulher por falsidade. Houve aqui nestas terras uma tribo de índios. O tuichaua, o velho Kemembaua, morreu há cinco anos; tinha uma filha, Iaci, linda entre todas as tapuias, de cabelos e olhos tão negros como as noites de tempestade; os seios turgidos davam a impressão de flechas retesadas num arco.

Toda a mocidade guerreira da aldeia desejava-a por esposa e era com ansiedade que esperava a celebração da sua puberdade. A maloca inteira venerava-a; sendo a sua palavra um oráculo, como me disse o velho pajé Muipiraua: uns diziam que o Grande Espírito a tinha feito nascer da Lua com o Sol; faziam-na outros gerada da Noite com o Dia.

Certa manhã em que ela se banhava no igarapé que fica atrás daquele cumaru, mostrando aos olhos invisíveis de Tupã o esplendor do seu corpo moreno, um branco, um viajor incumbido da catequese dos silvícolas, apareceu e, sem que ela pudesse evitar a insânia que sua beleza causara ao aventureiro, furtou toda a ventura do tapuio escolhido para seu marido...

Kemembaua, cientificado da afronta infligida à filha, lança o seu “Hi-o-há” de guerra, dardeja do arco e põe-se no encalço daquele que a maculara. O branco, sabedor do ódio que o seu ato motivara entre aqueles que tinha por dever chamar à civilização, tratou de fugir para lugar onde a ira dos ofendidos não o alcançasse. Vendo baldados os esforços para a captura do catequista, Kemembaua aplicou à filha, vilipendiada, a lei da tribo: sujeitou-a ao suplício de lhe cortar os seios.

E, sob a revolta que tal cena despertava na gente que a adorava, revolta velada pelo respeito aos desígnios do chefe, vindo através dos tempos, até eles, Kemembaua os lançou na água parada do lago. Muipiraua repetiu-me as palavras que proferiu:

– Iaci sofre porque branco fugiu.

Assim, o ídolo da maloca, com o peito em chaga, expirou a castigo tão cruel...

 

MEDEIROS, Adonai de. Jamachi: coisas da Amazônia. São Paulo: Gráfica São José, 1934. p. 9-12

 

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*Acerca de Adonai de Medeiros não foi possível encontrar quaisquer referências biográficas, além da que diz ser do Amazonas, no início da obra.

Um comentário:

eliana castela disse...

Adorei a "Explicação" que vem no início do texto. Há alguma semelhança com o poeta Isaac Melo. Risos. Eu gosto da explicação.